domingo, 13 de agosto de 2017

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O aparelho de rádio tinha um caixilho de madeira e a face era como uma máscara cega, olhos e boca em panos. Havia a mesma melancolia nos brados dos relatos, nas sinfonias, nas novenas de Fátima e na voz quebrada dos discursos de estado. Como se o espírito nos desse sinal do holocausto, alheadas sobre o enlace das silhuetas: estarmos vedadas de tanta finura, veemência ou persuasão. Ainda hoje me assola a tristeza desses sons que não escuto e me temo de um rádio aberto em surdina à minha beira. Vivíamos sob esse rumor a que só mais tardiamente demos sentido, quando o hóquei patinado se tornou uma paixão cívica.

Maria Velho da Costa em Missa in Albis

Rashid: é a primeira casa que vejo sem televisão.
Paul : Já tive uma, mas estragou-se aqui há uns anos e nunca me decidi a substituí-la. De qualquer das maneiras, prefiro não ter nenhuma. Odeio essas porcarias.
Rashid: Mas assim não pode ver os jogos. Disse-me que era fã dos Mets
Paul: Ouço pela rádio. Assim consigo ver muito bem os jogos. O mundo está na nossa cabeça, lembras-te?

Paul Auster em Smoke

A recordação mais antiga que tenho é a de um rádio. O meu pai chegou a casa com uma caixa, e tirou de lá de dentro uma Pilot Baby. Depois o meu pai disse que ia chegar um técnico para montar a telefonia, e nós ficámos todos muito excitados com aquilo, sobretudo uma tia minha que era um bocado nervosa. O técnico chegou, olhou para a mesa onde estava o rádio, olhou para a ficha, e disse "Isto não pode ficar aqui", e arrastou a mesa até à ficha. Depois ajoelhou-se, ligou o rádio, começou a sintonizá-lo, e ouviram-se uns ruídos estranhíssimos (imita esses ruídos). De repente a casa ficou inundada de música. Teria talvez 4 anos. Recordo-me do meu pai encostado ao rádio a ouvir música. Eu fiquei proibido de mexer no rádio, claro. 

Raul Solnado em Infância de Sarah Adamopoulos

A voz aguda do Abelaira (que anda aflito com as provas de “Enreada Amena” contou-me ontem:
- No domingo fui à “matinée” do São Jorge onde se me deparou a seguinte imagem “assombrosa” (palavra de muito agrado do Abelaira): vários espectadores, de rádio portátil na mão e auscultador no ouvido, não perdiam uma sílaba do relato do futebol. Enquanto assistiam, interessados, ao desenrolar da intriga na tela.
Meu Deus! Já não lhe basta um espectáculo. Querem dois ao mesmo tempo! E não tardará o dia em que levarão também uma televisãozinha de bolso para pôr no colo e espreitar, de vez em quando, um episódio qualquer de folhetim parvo.
Em resumo: encher a vida.

José Gomes Ferreira em Passos Efémeros, 1º Volume dos seus Dias Comuns

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