Agora que a bola voltou a rolar, a sério,
nos relvados do Reino, lembro os meus tempos dos relatos de futebol na rádio.
Escrevi rádio mas gosto mais de dizer telefonia.
Quando o futebol era jogado apenas nas
tardes de domingo, Inverno às três da tarde. Verão às quatro da tarde.
No restaurante que a Aida teve em
Almoçageme, não descansámos enquanto não pusemos, na parte da tasca um velho
rádio, que só dava onda média e ondas curtas. E nem sempre!
Assim como uma velha crónica do brasileiro
Maurício Neves:
«No princípio era o verbo. O Flamengo era pouco mais
do que o burburinho do rádio, composto pelo alvoroço dos locutores e pelo
chiado das ondas médias, que meu pai tentava reduzir girando o botão maior, o
da sintonia. Pacientemente. Às vezes mexia na antena, mudava o aparelho de
lugar alguns milímetros, com o cuidado tenso de quem desarma uma bomba. De
repente a voz de bluesman de Jorge Curi enchia a sala: “Anooooteeem...
Teeeeempo e placaaaarr no maaiooorrrr do muuuundoooo...” Eu sabia poucas
coisas. Mas sabia que maior do mundo era como Jorge Curi chamava o Maracanã, e
sabia que logo ele estaria gritando um gol de Zico. Aliás, Zico não. Um gol de
Zico, Zicão, Zicaço. Meu pai seguia olhando o rádio, onde estava escrito Philco
acima da tela metálica e furadinha. O som enchia a sala de heróis que
circulavam ao redor de nós. Uma sucessão de espectros rubro-negros: Zico tocava
a Adílio, que driblava um e abria para Júlio César, o entortador, que entortava
um, dois, três, e a bola voltava para Zico que então virava Zico, Zicão,
Zicaço. Meu pai sorria olhando para o rádio: o Flamengo saía dali.»
Os relatos do futebol pela rádio.
As perfeitas tardes de domingo de um tempo
perdido para sempre, vozes que ainda ouço apesar de já não andarem por aqui.
As tardes de domingo, os jogos a começarem
todos à mesma hora, os relatos na Emissora Nacional, as marchas do John Philip
de Sousa, enquanto se aguardava a ligação ao estádio, o Artur Agostinho, o
Amadeu José de Freitas, o Nuno Brás e era apenas o relato de um jogo, mais
tarde passaram a dois: «atenção Nuno, jogada perigosa».
João César Monteiro, em As Recordações da
Casa Amarela, deitado na cama do quarto alugado, ouvindo, num rádio de
pilhas, o relato da Emissora Nacional. A voz do locutor, de repente, grita:
«golo do Benfica», o João César ergue-se, de braços no ar a vitoriar o golo.
Manuel Alegre, no seu livro Alma,
recorda essas tarde de relatos de futebol nas tardes de domingo, a voz de
Alfredo Quádrios Raposo que eu já não apanhei:
…os jogos de
domingo e os relatos de Alfredo Quádrios Raposo, o melhor locutor desportivo de
todos os tempos. Nesse tempo não havia transmissões directas e ao fim das
tardes de domingo ainda não se sabiam os resultados. Era preciso esperar pelo
resumo da primeira parte e o relato da segunda, que eu ouvia no RCA, em
companhia dos meus amigos que não tinham rádio. Ouvíamos então a voz
inconfundível de Alfredo Quádrios Raposo anunciar os golos do Peyroteu, os
tentos do Julinho, as grandes jogadas do Vasques e do Travassos, os cortes de
cabeça de Feliciano, os dribles de Mariano Amaro, a recepção de bola com o
peito de Francisco Ferreira, capitão do Benfica. E as defesa do Azevedo, do
Capela, do Martins, do Barrigana, as intercepções do Guilhar, os remates
fulminantes de Araújo. Ou os nomes raros dos jogadores do Sul, como o Abraão e
o Grazina, do Olhanense, o Patalino e o Massano, do Elvas. Eram momentos
inesquecíveis, sobretudo quando havia jogos entre os grandes. A minha irmã por
vezes ia espreitar por detrás do aparelho e nenhum de nós compreendia muito bem
como era possível o jogo estar a decorrer nas Salésias, em Alvalade, no Campo
Grande ou na Constituição e nós em Alma a ouvir o relato como se estivéssemos a
ver. Seguíamos as palavras, as entoações de voz, as mudanças de ritmo, as
pausas. E víamos. Era uma forma de ficção, quase sempre mais verdadeira do que
a realidade. Nunca ninguém relatou como Alfredo Quádrios Raposo. Ele era a
nossa ligação à capital, ao Estádio, ao jogo. Durante muito tempo ele foi a
nossa festa, todos os domingos, ao fim da tarde.
Os jogadores
viviam na nossa imaginação como figuras de lenda. Conhecíamo-los apenas das
fotografias dos jornais, da revista Stadium e dos cromos que
comprávamos embrulhados em rebuçados para depois colarmos numa caderneta. Mas
era na voz de Alfredo Quádrios Raposo que verdadeiramente víamos os jogadores.
Entravam em nossa casa, todos os domingos, ao fim da tarde. Vinham na voz
daquele locutor de quem nunca vi o rosto nem faço a mínima ideia de como era,
se alto ou baixo, se magro, se gordo, se velho, se novo. Era uma voz, um brado
na tarde triste, um drible, um centro cruzado, um remate de cabeça, uma defesa
para canto, uma recarga, um golo. Primeiro no RCA, depois no Telefunken trazido
da Alemanha por Tiago de Faria, meu tio, que o deu a meu pai, juntamente com
uma espingarda, a troco de uma edição rara, senão mesmo a primeira, da Arte
de Bem Cavalgar a toda a Sela, de D. Duarte.
Também esses
velhos aparelhos, quando aqueciam, tinham um cheiro. Eu guardo comigo o cheiro
do RCA e do Telefunken nas tardes de domingo, um cheiro inseparável da voz de
Alfredo Quádrios Raposo e da imagem de Peyroteu a marcar, com Feliciano à
ilharga, mais um golo do Sporting contra o Belenenses, no Estádio das Salésias.
Sem comentários:
Enviar um comentário