domingo, 13 de agosto de 2017

A MINHA AMIGA RADIO


Agora que a bola voltou a rolar, a sério, nos relvados do Reino, lembro os meus tempos dos relatos de futebol na rádio. Escrevi rádio mas gosto mais de dizer telefonia.

Quando o futebol era jogado apenas nas tardes de domingo, Inverno às três da tarde. Verão às quatro da tarde.

No restaurante que a Aida teve em Almoçageme, não descansámos enquanto não pusemos, na parte da tasca um velho rádio, que só dava onda média e ondas curtas. E nem sempre!

Assim como uma velha crónica do brasileiro Maurício Neves:

«No princípio era o verbo. O Flamengo era pouco mais do que o burburinho do rádio, composto pelo alvoroço dos locutores e pelo chiado das ondas médias, que meu pai tentava reduzir girando o botão maior, o da sintonia. Pacientemente. Às vezes mexia na antena, mudava o aparelho de lugar alguns milímetros, com o cuidado tenso de quem desarma uma bomba. De repente a voz de bluesman de Jorge Curi enchia a sala: “Anooooteeem... Teeeeempo e placaaaarr no maaiooorrrr do muuuundoooo...” Eu sabia poucas coisas. Mas sabia que maior do mundo era como Jorge Curi chamava o Maracanã, e sabia que logo ele estaria gritando um gol de Zico. Aliás, Zico não. Um gol de Zico, Zicão, Zicaço. Meu pai seguia olhando o rádio, onde estava escrito Philco acima da tela metálica e furadinha. O som enchia a sala de heróis que circulavam ao redor de nós. Uma sucessão de espectros rubro-negros: Zico tocava a Adílio, que driblava um e abria para Júlio César, o entortador, que entortava um, dois, três, e a bola voltava para Zico que então virava Zico, Zicão, Zicaço. Meu pai sorria olhando para o rádio: o Flamengo saía dali.»

Os relatos do futebol pela rádio.

As perfeitas tardes de domingo de um tempo perdido para sempre, vozes que ainda ouço apesar de já não andarem por aqui.

As tardes de domingo, os jogos a começarem todos à mesma hora, os relatos na Emissora Nacional, as marchas do John Philip de Sousa, enquanto se aguardava a ligação ao estádio, o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Nuno Brás e era apenas o relato de um jogo, mais tarde passaram a dois: «atenção Nuno, jogada perigosa».

João César Monteiro, em As Recordações da Casa Amarela, deitado na cama do quarto alugado, ouvindo, num rádio de pilhas, o relato da Emissora Nacional. A voz do locutor, de repente, grita: «golo do Benfica», o João César ergue-se, de braços no ar a vitoriar o golo.

Manuel Alegre, no seu livro Alma, recorda essas tarde de relatos de futebol nas tardes de domingo, a voz de Alfredo Quádrios Raposo que eu já não apanhei:

…os jogos de domingo e os relatos de Alfredo Quádrios Raposo, o melhor locutor desportivo de todos os tempos. Nesse tempo não havia transmissões directas e ao fim das tardes de domingo ainda não se sabiam os resultados. Era preciso esperar pelo resumo da primeira parte e o relato da segunda, que eu ouvia no RCA, em companhia dos meus amigos que não tinham rádio. Ouvíamos então a voz inconfundível de Alfredo Quádrios Raposo anunciar os golos do Peyroteu, os tentos do Julinho, as grandes jogadas do Vasques e do Travassos, os cortes de cabeça de Feliciano, os dribles de Mariano Amaro, a recepção de bola com o peito de Francisco Ferreira, capitão do Benfica. E as defesa do Azevedo, do Capela, do Martins, do Barrigana, as intercepções do Guilhar, os remates fulminantes de Araújo. Ou os nomes raros dos jogadores do Sul, como o Abraão e o Grazina, do Olhanense, o Patalino e o Massano, do Elvas. Eram momentos inesquecíveis, sobretudo quando havia jogos entre os grandes. A minha irmã por vezes ia espreitar por detrás do aparelho e nenhum de nós compreendia muito bem como era possível o jogo estar a decorrer nas Salésias, em Alvalade, no Campo Grande ou na Constituição e nós em Alma a ouvir o relato como se estivéssemos a ver. Seguíamos as palavras, as entoações de voz, as mudanças de ritmo, as pausas. E víamos. Era uma forma de ficção, quase sempre mais verdadeira do que a realidade. Nunca ninguém relatou como Alfredo Quádrios Raposo. Ele era a nossa ligação à capital, ao Estádio, ao jogo. Durante muito tempo ele foi a nossa festa, todos os domingos, ao fim da tarde.
Os jogadores viviam na nossa imaginação como figuras de lenda. Conhecíamo-los apenas das fotografias dos jornais, da revista Stadium e dos cromos que comprávamos embrulhados em rebuçados para depois colarmos numa caderneta. Mas era na voz de Alfredo Quádrios Raposo que verdadeiramente víamos os jogadores. Entravam em nossa casa, todos os domingos, ao fim da tarde. Vinham na voz daquele locutor de quem nunca vi o rosto nem faço a mínima ideia de como era, se alto ou baixo, se magro, se gordo, se velho, se novo. Era uma voz, um brado na tarde triste, um drible, um centro cruzado, um remate de cabeça, uma defesa para canto, uma recarga, um golo. Primeiro no RCA, depois no Telefunken trazido da Alemanha por Tiago de Faria, meu tio, que o deu a meu pai, juntamente com uma espingarda, a troco de uma edição rara, senão mesmo a primeira, da Arte de Bem Cavalgar a toda a Sela, de D. Duarte.
Também esses velhos aparelhos, quando aqueciam, tinham um cheiro. Eu guardo comigo o cheiro do RCA e do Telefunken nas tardes de domingo, um cheiro inseparável da voz de Alfredo Quádrios Raposo e da imagem de Peyroteu a marcar, com Feliciano à ilharga, mais um golo do Sporting contra o Belenenses, no Estádio das Salésias.

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