Carta de
Mário-Henrique Leiria, datada de S. Domingos de Rana, 27 de Agosto de 1961,
para Maria Isabel.
Aqui continuamos a caminhar no lodo. Espero deixar de caminhar neste
lodo no dia 14. Irei com certeza caminhar noutros, mas nesse acredito não
chegar ao fim do ano (e peço aos deuses reias do ainda mais real inferno em que
vivo que me ajudem nesta crença). Espero e desejo ser eu próprio a brevemente
mais um pouco de trampa de adubo, o que com certeza ajudará a crescer algumas
couves alimentícias… se for possível que, entre elas, nasça também uma papoila
bem vermelha, será uma compensação grande e suficiente…
Mário-Henrique passa
a informar Maria Isabel que recebera carta da ex-mulher em que esta, apesar das
eventuais súplicas de amor que lhe fizera, exige, mesmo, o divórcio.
Portanto, já não vale a pena desejar que tudo corra bem. O correr bem –
ou seja, um rápido divórcio – é apenas o esmagar quase físico daquilo que eu
desejava, isto é, tê-la comigo para uma nova vida. Peço-lhe apenas uma coisa,
Maria Isabel: creio que nos demos razoavelmente bem no pouco tempo em que nos
encontrámos e creio que você acredita um pouco em mim e sabe quanto amei – a amo
desesperadamente, como uma maldição do inferno. aquela moça. Logo, peço-lhe que
não entre em atritos com o meu advogado. A ele, direi o mesmo, Se fosse
possível, eu nem teria advogado, deixava tudo ser feito por si Não quero que a
Fipsy fique com qualquer coisa desagradável no processo, Ela feriu-me muito e,
nesta última carta, ainda mais (que diabo, um homem pode ter cometido muitas
faltas, mas nem todas – e as maiores – foram dele! E, no fundo, há um reles e
ordinário coração que, nem por estar totalmente solitário, deixa de sentir e
sangrar). Ela feriu e deitou sal na ferida, mas eu continuo a amá-la e não
quero, não quero que haja qualquer coisa que lhe possa prejudicar o futuro. Não
sei se você compreende esta posição: é quase cristã (afinal nós estamos muito
próximo dos cristãos primitivos, tanto no amor, como na fé e na acção). Mas o
que é com certeza, é amor como eu o compreendo: dei tudo, recebi nada. Ao fim
de muitos anos de sede, pedi água: deram-me um copo de cinzas, mas deixaram-me
sentir o sabor da água durante dois anos. Por esses dois anos em que pensei ser
amado e ser feliz, quero dar agora o mais que posso.
(…)
É tudo.
Pessoalmente, tenho duas costelas (quase de carneiro) partidas e uma
rótula fora do lugar. São as consequências da tal habilidade de trapézio voador
(“The darning young man on the flying trapeze”; W. Saroyan. Se não conhece,
obrigue-se a conhecer, que não perde nada). Esta habilidade foi forçada pela
manobra inesperada de um estimado táxi, conforme lhe disse pelo telefone. Mas
continuo de pé, que é como quero morrer. Que diabo, deixei-me um último prazer.
Mário-Henrique Leiria
em Depoimentos Escritos
Legenda: imagem Shorpy
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