quarta-feira, 9 de agosto de 2017

É BRUTAL, É O MENOS QUE POSSO DIZER


Carta de Mário-Henrique Leiria, datada de S. Domingos de Rana 15 de Agosto de 1961, para Maria Alves da Silva, advogada da mulher do autor, em processo de divórcio:

Ando numa total desorientação, não por causa do que penso e acredito, mas por causa de certos acontecimentos que, para mim, são contraditórios! Você sabe o que é morrer atropelado por um velho camião já comprado em 2ª mão e guiado por um bêbado? Pois é quase a espécie de morte que me propõem… uma morte destas não é útil para ninguém, nem para o que morre nem para o camião… É claro que falo por imagens (embora baratas), pois ninguém me propôs a morte ou coisas que tais. Mas a vida proposta é idêntica a tal morte (ou talvez pior, porque se continua vivo).
Cara Mª Isabel, também tenho que falar consigo e o mais depressa possível, acerca de coisas legais. A minha estimada esposa escreveu-me (recebi a carta exactamente no dia em que cheguei; agora quer a casa toda!!! É impossível viver-se assim, venerável legista, é impossível, ou acaba-se na loucura ou no suicídio. A uma carta em que se fazem propostas às pessoas para irem para a Alemanha e se mandam beijos, uma carta que até abre uma esperança de talvez não estar tudo perdido, segue-se uma carta de uma injustiça e de uma crueldade inacreditável! Que é isto? Estará ela louca?... Não sei, não percebo nada e ainda menos a percebo a ela…
Escrevi-lhe logo a seguir, oferecendo-lhe aquilo que posso, aquilo que mais me custa e mais me destrói, mas que é a única coisa que posso fazer: o divórcio. Se ela quiser, tê-lo-á imediatamente. Para quê viver assim, para quê amar e estar constantemente a construir uma esperança que, logo a seguir, é destruída? Para quê? É claro que o divórcio não mata o amor mas, pelo menos, talvez a faça feliz… que é afinal, a única coisa que desejo neste momento. Talvez você não acredite, mas desejo mais, muitíssimo mais, a felicidade da minha mulher do que a minha. Não há em mim o menor desejo de vingança, pode crer, existe apenas uma grande amargura e uma enorme solidão… Nada a fazer, parece-me…
Gostaria portanto de “conferenciar” consigo. Se ainda cá estiver e puder, telefone-me entre as 9h e as 10h da manhã para o 044396. Talvez você consiga explicar-me aquilo que não compreendo: uma mulher abandona o lar e o marido declarando abertamente que gosta de outro e depois… depois exige tudo o que abandona (excepto o marido, claro) e continua a torturar o marido, só por saber que ele ainda a adora… É brutal, é o menos que posso dizer.

Cara Isabel, despeço-me com a profunda vénia asiática que é da praxe quando se quer ser “progressivo”…

Um abraço que ainda é de Camarada do

                                                                           Mário-Henrique

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos


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