Mário-Henrique deixou S. Domingos. Esta carta, datada de
31 de Agosto de 1961, já foi escrita em Carcavelos. Recebera carta de Maria
Isabel, encantada com Londres, de onde lhe escrevera, mais do que com Paris.
Gostaria imenso de
estar aí consigo. Londres e uma companhia exacta são duas coisas que não se
conseguem senão muito dificilmente. Gostaria de ir consigo comer uns horríveis
ovos com presunto no Lyon’s Corner de Regent Street, gostaria de a levar ao
pequeno restaurante chinês perto de Picadilly (não me lembro agora do nome da
rua), tão barato e tão pessoal, onde nós nos sentimos mesmo nós; ou então irmos
provar uma “pizza” na "pizzaria” onde a velha italiana tinha a mania de me
fazer festas na cabeça. Enfim, gostaria de estar a sentir Londres consigo.
Talvez pudesse contar-lhe só com os olhos o que é a Londres das pessoas, e não
a tal do turismo. Seria de facto “sensacional”, como você muito “highlifement”
afirma na sua carta. Mas, cara Mª Isabel, as coisas que desejamos nunca
acontecem ou, quando acontecem, é tão raramente que até parece que não
aconteceram. Assim, tenho que ficar aqui… até não ter.
Cara Mª Isabel,
diz-me você na sua carta que os seus amigos têm uma casa tão bonita como a
minha. Vénia agradecida pelo seu comentário, é o meu gesto nesta altura.
Simplesmente, a minha casa já não tem nada daquilo que você conheceu uns dias
atrás. Está praticamente perdida. Passo a explicar: como lhe disse, deixo-a
aqui, para que a Dietlinde faça o que lhe apetecer, pois já não tenho mais
capacidade para tentar salvar qualquer coisa. Simplesmente, três coisas
desapareceram temporariamente: os livros, as pinturas, e esculturas e os
discos. Passo a explicar: os livros vão ser entregues, como empréstimo, à
Biblioteca Operária de que eu fui um dos directores e organizadores há alguns
anos. Tem este acto a sua justificação: a minha “estimada esposa” nunca se
interessou, nem de longe, pelos livros. Apenas dizia que juntavam pó, etc.
Assim, e como podem ser úteis a gente que de facto se interessa pelo que neles
há, aí vão eles de empréstimo. Claro que todos os livros alemães e ingleses que
eu lhe ofereci (e até bastantes que já eram meus antes do inefável casamento)
aqui ficam.
Quanto ás 2Obras de
arte”, seguem em viagem de recreio pela Europa latina (Espanha, França, Itália)
integradas, também única e simplesmente como empréstimo, numa exposição itinerante
que “companheiros” velhos estão preparando. Assim se mostrará a gentes dessas
terras bárbaras que cá também se sabe alguma coisa. Cá em casa fica o quadro
pintado por mim que está na casa de jantar e o crucifixo que está no quarto. No
lado da minha virginal esposa. Disse-me ela, numa última carta, que queria isto
e eu isto deixo ficar. Bem.
Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos.
Nota do editor: amanhã será transcrita a parte final
desta carta do Homem do Gin para a advogada Maria Isabel.
Sem comentários:
Enviar um comentário