terça-feira, 31 de outubro de 2017

OLHARES


O licor começa a ser feito em Março, quando aparecem os morangos.

Num frasco de boca larga colocam-se 100 gramas de morangos, 100 gramas de açúcar e cobrem-se com aguardente.

No decorrer dos meses seguintes, coloca-se a mesma quantidade de açúcar e de aguardaente.
À medida que os frutos vão surgindo passam a entrar: framboesas, cerejas, ginjas, alperces, pêssegos, amoras, ameixas.
O último fruto são as uvas.

No último dia do mês de Outubro rectifica-se o açúcar e a aguardente.

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Contracapa de Recomeço Límpido.
O poema de José Gomes Ferreira é retirado de Poesia VI.
Refere o episódio do assalto ao paquete Santa Maria. Com estas palavras José Gomes Ferreira situa o episódio:
«O Galvão apoderou-se do paquete «Santa Maria». Baptizado de «Santa Liberdade» vagueia agora pelos mares numa missão de propaganda contra este Pedregal de Grilhetas.»

OLHAR AS CAPAS


Recomeço Límpido
No Centenário de José Gomes Ferreira

Vátios autores
Capa e Ilustrações: Acácio de Carvalho
Fotografia da capa: Nuno Calvet
Edição do Sector Intelectual do Porto do PCP, Porto, Junho de 2000

Sob o pseudónimo de Álvaro Gomes arredondava a conta ao fim do mês traduzindo legendas de filmes, findas que eram as suas tarefas como secretário do cinema Tivoli. Depois, ia aos amigos, amesendando-se em tertúlias que marcaram época e cunharam duas ou três gerações: no Café Chiado, no Café Bocage, no Café Martinho, no Café Monte Carlo. Eis alguns deles: Aquilino, Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Manuel Mendes, Bento de Jesus Caraça, Augusto Abelaira, Manuel Azevedo, João José Cochofel, Fernando Lopes-Graça, Mário Dionísio. Tantos, tantos mais. Eu era um rapaz esgalgado e ávido, sentado junto deles, a escutá-los sem nada dizer: apenas a ouvi-los discretear sobre as coisas do mundo e o mundo das coisas. O homem que sou deve tudo o que é a esses homens probos, escrupulosos, vigilantes, que defendiam a integridade moral com uma veemência impositiva.

(Do texto de Baptista-Bastos)

DESCONFIO QUE ESTOU DOIDO

Num qualquer dia de Novembro do ano de 1961, o Mário-Henrique Leiria escrevia a Isabel e contava-lhe que chovia imenso.

Sim, naqueles tempos chovia muito e fazia frio. 

Lembro as inundações de Novembro de 1967, vai fazer 50 anos que aconteceram.

Agora, cada vez chove menos, não chove mesmo nada.

Ontem, o Cardeal-Patriarca de Lisboa pediu aos sacerdotes para que rezassem na esperança que a chuva chegue.

«Deus do universo, em quem vivemos, nos movemos e existimos, concedei-nos a chuva necessária, para que, ajudados pelos bens da terra, aspiremos com mais confiança aos bens do Céu. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo». 


«Restará espaço para dizer uma coisa bonita? E sincera, e com todo o respeito: nada têm de ridículo estas cartas de amor. As cartas de Amor NUNCA são ridículas. Poderemos sorrir. Isso sim. Aquela Isabelinha bonita, aconchegada com marido e filhos nas brumas de Londres, e Beluska e distante Maruska, doce como o olhar das gazelas do Volga… sai destas cartas como figura inesquecível. Mais muito mais que aquele cavalheiro francês, torpe e antipático, que podemos imaginar nas cartas da Alcoforado. Fazem o favor de conferir, que não exagero nada, lendo-as.»

SARAMAGUEANDO


Creio que mesmo que vivêssemos duzentos anos, haveria portas nossas que continuariam fechadas. Porquê? Porque não sabemos abri-las. Freud chegou para abrir umas quantas, mas é certo que não as abriu todas, e até que chegou Freud e outros como ele, essas portas estavam fechadas. De qualquer modo, as pessoas tinham vivido, os escritores tinham escrito coisas magníficas, Shakespeare não tinha precisado de Freud. Provavelmente, as portas que cada um pode abrir talvez não sejam suficientes para poder exprimir de uma forma completa quem és, porque se pudesses abri-las todas, algumas delas seria melhor voltar a fechá-las imediatamente porque o espectáculo podia não ser agradável. Quem sabe se o melhor será nunca chegarmos a dizer quem somos.

José Saramago em O Amor Possível de Juan Arias

Legenda: fotograma de Fanny Owen de Manuel de Oliveira

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Ele pode parecer um idiota e falar como um idiota, mas não te iludas: ele é mesmo um idiota.

Groucho Marx

NOTÍCIAS DO CIRCO


O Cardeal-Patriarca de Lisboa propôs esta segunda-feira aos sacerdotes católicos que rezem a pedir chuva. "Face à seca prolongada sofrida em Portugal, D. Manuel Clemente propõe aos sacerdotes que 'quando a Liturgia diária o permita, celebrem a Missa para Diversas Necessidades', com a oração prevista", explica o patriarcado, em comunicado.

É este o texto da oração proposta:

«Deus do universo, em quem vivemos, nos movemos e existimos, concedei-nos a chuva necessária, para que, ajudados pelos bens da terra, aspiremos com mais confiança aos bens do Céu. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo». 

Legenda: Gene Kelly em «Singing in the Rain».

OLHAR AS CAPAS


Poesias Escolhidas

Selecção, prefácio e notas: Jorge Fazenda Lourenço
Capa: Rochinha Diogo
Círculo de Leitores, Lisboa, Março de 1989

Os trabalhos e os dias

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
e principio a escrever como se escrever fosse respirar
o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem
de um caminho sem nada para o regresso da vida.

À medida que escrevo, vou ficando espantado
com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada.
Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito.
Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre,
quando fico triste por serem palavras já ditas
estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos.

Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.

INCLINA OS CÉUS E DESCE


Meu escudo, defesa e meu castelo
sim, mas tenho medo
das ondas criminosas
do abraço do sepulcro

Eu sei que te indignaste.
Então afasta as águas caudalosas.
Se tu me queres bem, agora o prova
e nenhum esquadrão me fará medo
nem muralha haverá que me resista.

Inclina os céus e desce.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

VELHOS RECORTES


Por causa do seu olhar de gata, Jean Cocteau chamou-lhe o mais belo animal do mundo.
Ava Gardner nasceu na véspera de Natal do ano de 1922, em Grabtown, Carolina do Norte. 
Um dia perguntaram a um escritor se tinha animais em casa.
Respondeu que sim: «um poster do mais belo animal do mundo, Ava Gardner.»

Este é um recorte, suponho que do Público, quando em Agosto de 2013 saía nos Estados Unidos «Ava Gardner: The Secret Converstions.»

Sobre Ava Gardner, escreveu Edgar Morin: «Ava Gardner é demasiado grande para uma Hollywood diminuída. É uma raínha sem reino, os seus súbditos estão dispersos pelo mundo… Amam nela a beleza duma deusa, o dilaceramento duma heroína, a plenitude da feminilidade. Mesmo depois de ter deixado este mundo, deixou alguns súbditos indignos a repetirem como papagaios, e sob pretexto de homenagem, o estafado epíteto machista de «o mais belo animal do mundo». Nem morta foi poupada.»

Ou lembrar George Cukor que a dirigiu em «Bowani Junction:
«Ela era extremamente inteligente. Exerce uma grande fascinação, mas está assombrada pelo desespero. É uma mulher dominada pela fatalidade. Não está de boas relações consigo mesma e, entre outras coisas, considera-se uma má actriz. No meu filme ela tinha algumas maravilhosas cenas erótica… Lavava os dentes com whisky, de uma maneira muito ordinária e muito excitante. Mas foi tudo cortado pelos censores.»

domingo, 29 de outubro de 2017

ETECETERA


Preocupante a situação na Catalunha.

Em Barcelona, este domingo, realizaram-se manifestações pela unidade de Espanha marcadas por símbolos fascistas e por actos violentos.

O parlamento regional da Catalunha aprovou na sexta-feira a independência da região, numa votação sem a presença da oposição, que abandonou a assembleia regional e deixou bandeiras espanholas nos lugares que ocupavam.

Ao mesmo tempo, em Madrid, o Senado deu autorização ao Governo para aplicar o artigo 155º. da Constituição para restituir a legalidade na região autónoma.

O executivo de Mariano Rajoy, apoiado pelo maior partido da oposição, os socialistas do PSOE, anunciou a dissolução do parlamento regional, a realização de eleições em 21 de dezembro próximo e a destituição de todo o Governo catalão, entre outras medidas.

O ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, Alfonso Dastis, afirmou hoje que o líder catalão Carles Puidgemont, demitido por Madrid, poderá ser preso por ter participado no movimento independentista.

O chefe da diplomacia do Estado espanhol indicou que Puidgemont pode «em teoria» ser candidato nas eleições regionais marcadas para 21 de Dezembro por Mariano Rajoy, «se nessa altura não tiver sido posto na prisão».

O Partido Comunista Português, em comunicado, já criticou o Governo espanhol, acusando-o de «intolerância, autoritarismo, coação e repressão», e considerou que a solução para a Catalunha passa pela vontade do povo catalão.

«A questão nacional em Espanha tem de ser considerada com a complexidade que a história e a atual realidade daquele país encerram. A resposta a esta questão, designadamente na Catalunha, deve ser encontrada no quadro do respeito pela vontade dos povos de Espanha e, consequentemente, do povo catalão. São profundamente criticáveis as atitudes do Governo espanhol, na base da intolerância, do autoritarismo, da coação e da repressão.»

Lê-se, ainda, no comunicado:

«É evidente que, a coberto da actual situação, se promovem valores nacionalistas reacionários e tomam alento sectores fascistas franquistas, que durante dezenas de anos oprimiram os povos de Espanha.»

BELÉM & SÃO BENTO

É estranho que um político experiente, e hábil, como António Costa não se tenha apercebido que os incêndios que destruíram vidas e bens, necessitava de um outro discurso, que se não é por se mudar de ministro que as coisas também não se resolvem em manter uma ministra que já demonstrara não ter pulso para aguentar a embarcação.

A comunicação social está apostar numa eventual guerra entre o presidente da república e o primeiro-ministro.

A situação entrou nnaquele campo das conferências de imprensa futebolísticas: um jornalista disse ao presidente que o governo ficara em estado de choque com o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa em Oliveira do Hospital e este respondeu de imediato que quem ficara chocado tinha sido o país.

É importante que impere o bom senso, que se coloquem de lado guerrinhas que nada trazem de positivo.

OUTRAS PREOCUPAÇÕES

O primeiro ministro da Hungria, Viktor Orban, disse no início desta semana, que a Europa Central é a última «zona livre de migrantes» e que a união entre países como a Hungria, Polónia e República Checa permite travar a globalização e as migrações em massa.

Ensurdecedor o silêncio da União Europeia face a estas declarações.

Entretanto na Áustria,  a extrema-direita está perto de voltar a integrar um governo. O partido de extrema-direita aceitou negociar com Sebastian Kurz e exigiu à cabeça a pasta de ministro do Interior.

CR7

O português mais conhecido em todo um mundo é um futebolista.

José Pacheco Pereira dixit.

E JÁ IAM NO QUARTO DRY-MARTINI...

Uma deliciosa história contada por Manuel S. Fonseca:

Garson Kanin, um belíssimo argumentista e um  bom realizador menor (era assim que eu falava quanto tinha carta de condução de intelectual), convidou Barrymore para ser o protagonista de The Great Man Votes, filme sobre um professor alcoólico em risco de perder a custódia dos seus dois filhos, depois da morte da mulher, que o lança em funda depressão.
Foram, Garson e John, jantar. Tinham avisado Kanin de que Barrymore, com a idade e o peso da realeza, era um tipo difícil. Mas John pareceu-lhe feliz e beberam antes, como aperitivo, um dry-martini. Trouxeram o menu, Barrymore nem o abriu, mas pediu um segundo cocktail. Conversa animadíssima e vibrante e já iam no quarto dry-martini, sem que Barrymore olhasse sequer para o menu.
Kanin sentiu que tinha obrigação de o pressionar e evitar que o grau de alcoolémia chegasse ao céu. “Mr. Barrymore, talvez seja altura de escolhermos o que vamos comer…” Barrymore, susceptível embora, respondeu-lhe com elegância: “Meu rapaz, quando chegares à minha idade vais descobrir que uma das piores coisas que podes fazer é começar a comer com o estômago vazio!”

CANÇÕES DE ENTARDECERES


A hora mudou esta madrugada.
Este é o primeiro pôr-de-sol dos novos dias, em que o Verão entrou pelo Outono dentro e parece não querer sair.
Uma citação de Horace McCoy, tirada do seu livro Os Cavalos Também se Abatem – um pôr-do-sol é mais importante que o peixe.
«A cor do Sol havia-se derramado em algumas nuvens delgadas, avermelhando-as. Lá longe, onde o Sol desaparecia, o oceano estava calmo, não parecendo de maneira nenhuma um oceano. Estava maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso. Algumas pessoas pescavam no cais, não prestando a mínima atenção ao pôr do Sol. Eram loucos. «Vocês precisam mais do pôr do Sol do que de peixe» disse-lhes em pensamento.»

Quanto a canções, bom, escolheu-se «Everybody Hurts» na grande versão dos R.E.M e uma interessante versão dos The Corrs.



UMA BOMBA DE UM MILHÃO DE MEGATONELADAS


A única canção que me tinha mantido agarrado à Leeds Music, a que convenceu John Hammond a levar-me até lá não era nem por sombras uma canção extraordinária. Era um tributo em letra e melodia ao homem que marcou o ponto de partida da minha identidade e destino – o grande Woody Guthrie. Escrevi a canção com ele na cabeça e usei a melodia de uma das suas antigas canções, não tendo a mínima ideia de que seria a primeira de provavelmente mil canções que eu escreveria. A minha vida nunca mais foi a mesma desde que em Minneapolis, há uns anos, ouvi Woody num gira-discos. Quando o ouvi pela primeira vez foi como se caísse uma bomba de um milhão de megatoneladas.

Bob Dylan em Crónicas

Legenda: Woody Guthrie. Na guitarra pode ler-se: «Esta máquina mata fascistas.»

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O romance Dois Crimes no Inverno, tem no seu final As Vinte Regras que S.S. Van Dine entendia que deviam orientar tanto os autores como os leitores de romances policiais, publicadas em 1928 na American Magazine.
É um curiosíssimo documento em que Van Dine começa por afirmar que o romance policial é uma espécie de jogo e acrescenta que é importante que o autor seja mais manhoso que o leitor assim como o leitor deve ter as mesmas oportunidades que o detective.
A regra nº 3 é muito curiosa e, nem todos os autores – feliz ou infelizmente – a seguiram:
«O verdadeiro romance policial não deve ter enredo amoroso. Introduzir nele o amor seria perturbar o mecanismo do problema puramente intelectual.»

Está aberta a aula de catequese do Sr, S.S. Van Dine:






OLHAR AS CAPAS


Dois Crimes no Inverno

S.S. Van Dine
Tradução: António Lopes Ribeiro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 57
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Efectivamente – disse Vance – vi a colecção há alguns anos. Está mal guardada.
- pois está. Por sorte que o local não fica dentro dos limites do meu distrito. De contrário, viveria numa angústia constante. Já o tenho aconselhado a transferir a colecção para um museu qualquer.
- Que ideia, Markham! Ele quer-lhe mais que à vida. Se o privassem das esmeraldas, morreria. Porque é que há no mundo colecionadores?
- Não sei. Não fui eu quem fez o mundo.

PAPÉIS DATADOS


Conheci o pintor Artur Bual numa exposição de obras suas no SNI, o coio da propaganda salazarista.

Muito anos mais tarde, com o Helder Pinho, o Karlos Faria, abancámos, numa patuscada, na cave que ele tinha por atelier/habitação na Amadora: latas de atum, azeitonas, queijinhos frescos, um garrafão de tinto.

Parvamente, a meio daquilo tudo e de muita converseta, lembrei-lhe o SNI.
Muito calmamente respondeu:

- Fomeca, meu caro, muito espaço no estômago.

Nem mais uma palavra.

Se parvo fui, parvo fiquei.

Faltavam muitos anos para ouvir o Mário-Henrique Leiria dizer: «Posso morrer de fome mas não peço esmola», ou ainda, «para vivir de rodillas vale más morir de pie.»

Mas isso era o Mário-Henrique Leiria, um louco genial e não podemos exigir que todos fossem como ele.

Aprende-se com as muitas merdas que vamos dizendo e fazendo.

Com aquela parvoeira no atelier/habitação do Bual, a sua resposta, tomei uma lição para a vida.

Receio bem que o Mário-Henrique Leiria tenha caído no esquecimento. Apenas alguns moicanos, provavelmente os últimos, ainda sabem quem seja e lhe conheçam as pinturas e os livros.

Conheci-o antes do 25 de Abril, por mero acidente líquido no «Expresso-Bar», ali no Largo da Trindade.

Uma atracção imediata, um espanto que não mais se esquece. Um excelente contador de histórias, rasgado por um humor colorido, gritante, irresistível, demolidor, corrosivo mas desfazer-se em ternura.

Um louco genial, que gargalhava frente à angústia. Era cruel e entendia que a «crueldade é somente um processo quotidiano de exprimir qualquer coisa», ou como dele disse o O’Neill: «um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No fundo tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer.»

Aliás, como viemos a descobrir com a publicação de Depoimentos Escritos, um livro cruel cheio de beleza. Pela sua leitura ficamos a saber de uma paizão louca que teve por uma alemã, Dietlinde de seu nome, uma «ariana pura» e ele a ansiar por uma vida calma com fedelhos pendurados nos joelhos, doces natais, que ela sempre recusou.

A ariana acabou por fugir com outro, que ela considerou ser o amor da sua vida, e para além de o deixar destroçado e exigir o divórcio, levou-lhe quadros, discos com música e canções de Natal, música russa e brasileira.

(29 de Outubro de 2000)

Legenda: esta fotografia do «Expresso-Bar» tem alguns anos, estava o botequim em obras não sei se de restauro ou destruição. Terei que por lá passar… 

IRISH HEARTBEAT



Van Morrison está a festejar 50 anos de carreira a solo e publicou o seu 37º álbum de estúdio – Roll with the Punches.

Claro que Van Morrison não anda pelas listas dos discos mais vendidos, o próprio gosta muito pouco dos discos que faz, mas tem lugar de referência maior na música.

João Gobern, no Diário de Notícias, lembra a efeméride e acrescenta:

«Quando, há cinco anos, a insuspeita Rolling Stone procedeu a (mais) uma escolha dos 500 melhores álbuns de sempre, lá estavam, indiferentes às modas e à volatilidade destas eleições, dois discos do Big Van: Moondance(de 1970) em 66.º e Astral Weeks (de 1968, tão perto já do meio século) em 19.º. Nada mau, para um registo que, comercialmente, nunca foi além do 55.º lugar do top britânico...
Em boa verdade, qualquer destes álbuns e da esmagadora maioria dos outros, que perfazem o património de Van Morrison, pode continuar a ser ouvido hoje, com o mesmo prazer e sem enfrentar os riscos do final do prazo de validade. Por uma razão elementar: a escolha das canções, bem acompanhada pela escrita do próprio intérprete, continua a ser inspirada, apoiando-se na consistência do saber do protagonista, que conhece todos os standards, todos os nomes suscetíveis de poderem interessar-lhe. Depois, é aquele "pequeno passo" de génio, que se traduz em moldar cada momento a um fraseado próprio, a uma rítmica que transcende lógicas, a um tom de voz que se reconhece à segunda ou à terceira nota. Nestes particulares, faz lembrar Frank Sinatra, nada menos.

Roll with the Punches, para chegarmos ao que aqui nos traz, nada tem de novo - de resto, as últimas vezes que Van Morrison correu atrás da surpresa aconteceram em Irish Heartbeat, disco de 1988 gravado com os seus compatriotas (do lado sul da ilha verde) Chieftains, em que fez emergir despudoradamente as suas raízes celtas, e quando integrou o elenco especial da apresentação de The Wall (Pink Floyd) junto ao que restava do Muro de Berlim, redefinindo à força de voz uma canção tão contundente como Comfortaby Numb.

Aliás, é melhor que não haja sobressaltos - com Van Morrison, cada "prova cega" torna-se uma festa. E, neste disco, há, além dos temas próprios, canções de Bo Diddley, Doc Pomus, T-Bone Walker, Mose Allison, Sister Rosetta Sharpe e - bênção suprema - até de Sam Cooke e Count Basie. Além disso, por aqui se descobrem a guitarra de Jeff Beck, o Hammond de Georgie Fame, a harmónica de Paul Jones e o piano de Jason Rebello. O que significa que, estejam em causa Mean Old World ou How Far from God, Transformation ou Ordinary People (duas das três novas), e, sobretudo, Goin' To Chicago ou Bring It On Home To Me, a melhor solução passará sempre por deixar a música fazer o seu caminho, ligando-a ao passado ilustre de Van Morrison ou descobrindo um dos valores mais insistentes e coerentes da história do rock. Sem pressa - o feitiço vai obrigar a voltar aqui, uma e outra vez.


sábado, 28 de outubro de 2017

POSTAIS SEM SELO


O orgulhoso prefere perder-se a perguntar o caminho.

Winston Churchill

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

QUE OS LIVROS ESTEJAM CONVOSCO|


O livro A Cavalo do Diabo, do José Cardoso Pires, comprei-o na Livraria do Centro Comercial Arco-Íris, ao lado de outro centro comerciak, o Apolo70.
O Centro ainda existe, a livraria já não.
Entro numa livraria como a borboleta atraída pela luz.
Gostava muito desta livraria, onde era atendido por gente simpática, estava longe a chegada dos computadores, e que sabia o que é ser livreiro.
Como poetizou Manuel Alegre:

Há homens que são capazes
duma flor onde
as flores não nascem.
Outros abrem velhas portas
em velhas casas fechadas há muito
outros ainda despedaçam muros
acendem nas praças uma rosa de fogo.
Tu vendes livros  quer dizer
entregas a cada homem
teu coração dentro de cada livro.

As livrarias, aos poucos, têm vindo a desaparecer.
Lembro sempre o arrepio de Jorge Silva Melo quando viu fechar uma livraria em Campo de Ourique:
Numa crónica a que chamou Já Fechou a Livraria, incluída no seu Século Passado, conta que uma pequena livraria abriu um dia em Campo de Ourique mas não chegou a estar aberta um ano.«Por que não fui interlocutor solidário daquela senhora que efectivamente ousou e foi vencida? Por que hei-de perdoar-me a mim? Não foi isso mesmo o que eu disse àquele pequena livraria? Que não a queria? Que não me servia para nada? Que lhe prefiro a Internet e as fnacs? Se a pequena livraria fechou, fui também eu que a fechei».
Num ranking elaborado pelo jornal britânico The Telegraph, há duas livrarias portuguesas entre as 16 que o jornal considera como as mais bonitas do mundo.
Uma em Lisboa, a Ler Devagar, outra no Porto, a Lello & Irmão.

É SEMPRE DIFÍCIL ESCREVER TUDO O QUE SE QUER DIZER


Jorge de Sena ainda não responde à carta em que Sophia conta as peripécias do que aconteceu, em Florença, no Congresso da Comunidade Europeia de Escritores (Março de 1962) e em fins de Maio desse ano, Sophia escreve uma carta a Jorge de Sena, essencialmente para lhe dar os parabéns pelo nascimento da filha Maria José e a promessa que depois lhe escreverá uma carta mais comprida - «mas é sempre difícil escrever tudo o que se quer dizer»:

Caríssimo Jorge

A si e à Mécia mil parabéns pelo nascimento da Maria José.
Nós graças a Deus estamos bem, mas agora, no meio dos acontecimentos que se sucedem quanta falta você aqui faz!
Recebi Reino da Estupidez e A Noite que fora de Natal. Gostei com entusiasmo de
A Noite que fora de Natal. É o seu melhor conto: parece descrever uma paragem do tempo, com os seus silêncios e vazios. É extraordinária atmosfera tensa nua e trágica, cheia de «presença». E também a maneira de dizer, mais simplificada e desnudada do que nos seus outros contos e mais directa, é óptima.
O Reino da estupidez de tão magnífico título, apesar de todas as páginas óptimas que tem, parece-me demasiado cheio de questões que afinal talvez não mereçam ser postas na sua obra. Valerá a pena você gastar tanta inteligência para explicar aos parvos que são parvos?


Legenda: capa de A Noite Que Fora de Natal, Estúdios Cor), encontrada em  d’outro tempo

OLHAR AS CAPAS


Trabalho Poético
2º Volume

Carlos de Oliveira
Capa: Sebastião Rodrigues
Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa s/d

O Acender das luzes

Quem ordena estes sonhos
coordena, conduz
os tractores cuidadosos
do ocaso; êmbolos
com frio; quando lavram
o seu frágil fio de fogo
nas árvores, na memória.

E mais lentas ainda
as turbinas: turbilhão
que perturba vagarosamente
a ordem interior das coisas
que se deixam sonhar. Com
a polpa dos dedos
colhe-se a demora
para ver melhor. Nenhuma
colagem subliminar;
nem linhas de lume,
chispas, flechas.

Adormece talvez
quem ordena; se as lâmpadas
vagueiam e explodem
entre ramagens excessivas;
estes sonhos.

O PESO DA VELHA CASA DESERTA


Olhou para onde há pouco havia sol e já não o viu. E um silêncio definido (definitivo) veio cair sobre ele, o peso da velha casa deserta, e obrigou-o a ficar ali, quieto e calado, com medo de olhar para trás, quieto e calado, como coisa morta.

Luiz Pacheco em Exercícios de Estilo

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Vivo o efémero como futuro – e como se o efémero fosse eterno.

José Carlos de Vasconcelos

TALVEZ A DERRADEIRA DA MINHA VIDA


31 de Dezembro de 1969

Hoje, último dia da década de 60.
Vai começar outra, a de 70 – talvez a derradeira da minha vida. Preciso de aproveitá-la bem – cada hora, cada minuto, cada segundo, cada labareda – para tentar dizer finalmente aquele segredo que ando a balbuciar desde que nasci.

José Gomes Ferreira em Livro das Insónias Sem Mestre VIII volume dos Dias Comuns.

Nota do Editor: Não foi a última década de José Gomes Ferreira. Deixou-nos a 8 de Fevereiro de 1985.

OLHAR AS CAPAS


Aquário e Sagitário

Agustina Bessa-Luís
Capa: Francisco Previdência
Colecção Brevíssima nº 2
Contexto Editora, Lisboa s/d

Ainda hoje pasmo e digo: “Para o que me deu!”
Mas, escrever uma novela policial nos anos 50 pareceu-me, penso eu, uma forma de homenagem aos autores que me consolaram duma vida de mulherzinha, agradável sim, mas sem os recursos da invenção que resulta do mundo exterior, o perigo, a aventura da jungle humana ou, simplesmente, o cinema de bairro.
Santa Teresa teria escrito livros de cavalaria, se fosse homem. Eu, quando li Lovcraft, reconciliei-me com a vocação precoce dos mistérios terribilíssimos em que mergulhava, antes de saber que era escritora também.
Perdi-me de admiração por Edgar Poe e de amor incompreendido por Sherlock Holmes, uma e mesma pessoa.
Neste livro, com o seu aquário gigante e um cinismo lírico, passa a sombra de Orson Welles. Também ele amou os mistérios, as situações bizarras, o mundo dos ricos e as suas ideias sérias sobre tudo o que os conserve faraonicamente nas suas criptas.
Este pequeno volume, prenúncio duma neurastenia de escritor entre o desespero e o pressentimento do sucesso, é como uma dentada no mundo das letras. Tem um sabor profético doutro sal e doutros sabores. O que viria a seguir.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

DEVO TER FEITO DAS BOAS



Cesare Pavese suicida-se a 26 de Agosto de 1950.
Inicia a 6 de Outubro de 1935 este seu Ofício de Viver.
A 10 de Abril de 1936, encontramos a primeira referência ao suicídio: «estarei, para sempre, condenado a pensar no suicídio. É isto que me atemoriza: o meu princípio é o suicídio, nunca consumado, que nunca consumarei , mas que me acaricia a sensibilidade.»
A 15 de Março desse ano, regista que chegou ao fim o «confino», residência vigiada a que esteve condenado pelo governo fascista. Condenação que não teve a ver com qualquer actividade política, antes por ter escondido umas cartas a pedido de uma mulher que amava e que foi mais uma das suas inúmeras angústias e frustrações.
Em final de prosa do dia 10 de Abril de 1936, confessa: «Um homem que não sabe viver, que não cresceu moralmente, que é inútil, que se consola com a ideia do suicídio, mas não o realiza.»
Abandonado a si próprio, acabaria por desistir.


10 de Abril de 1936

Quando um homem está no estado em que me encontro só lhe resta fazer o exame de consciência.
Não tenho motivo para repudiar a minha ideia fixa de que tudo o que acontece a um homem é condicionado pelo seu passado; em suma, é merecido. Evidentemente que devo ter feito das boas para ter chegado a este ponto.
Antes de tudo, ligeireza moral. Já alguma vez pus verdadeiramente o problema de que, em consciência, devo fazer? Segui sempre impulsos sentimentais, hedonistas. A este respeito, não há dúvidas. Mesmo a minha misoginia (1930-1934) era uma atitude voluptuosa; não queria chatices e comprazia-me na »pose». Quanto esta «pose» era invertebrada, viu-se depois. E, também na questão do trabalho, não fui sempre um hedonista? Agradava-me trabalhar em arranques febris, sob o estímulo da ambição, mas tinha medo, medo de me prender. Nunca trabalhei  verdadeiramente e, de facto, não sei qualquer ofício. E há outro defeito que se vê também claramente. Nunca fui o simples inconsciente que goza as suas satisfações e se está nas tintas. Sou demasiado cobarde para isso. Acariciei-me sempre com a ilusão de que possuía o sentido da vida moral, passando instantes deliciosos – é a palavra justa – a inventar casos de consciência, sem me decidir a resolvê-los pela acção. Depois, não desejo exumar a complacência com que outrora me entregava ao aviltamento moral com fins estéticos, e do qual esperava uma carreira de génio. E este período ainda o não superei.
A prova! Agora que atingi a completa abjecção moral, em que penso? Penso como seria belo se esta abjecção fosse também material; se, por exemplo, tivesse os sapatos rotos.
Sòmente assim se explica a minha actual vida de suicida. E sei que estou, para sempre, condenado a pensar no suicídio, diante de qualquer dificuldade ou dor. É isto que me atemoriza: o meu princípio é o suicídio, nunca consumado, que nunca consumarei, mas que me acaricia a sensibilidade.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

OLHAR AS CAPAS


Fado Alexandrino

António Lobo Antunes
Capa: Fernando Felgueiras
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1983

… até chegar a Moçambique a única carta da minha irmã:
Abílio muito estimo que ao receberes desta te encontres de boa e feliz saúde que eu e o meu filho bem graças adeus apesar do Vítor não dar um tostão para a criança e me armar cada cena aqui à porta que só visto pancadaria ameaças palavreado Abílio trago uma notícia muito triste para ti e que é: o pai espichou estava a dar na televisão os ranchos folclóricos e eu só atentei nisso ao dizer-lhe para se ir deitar toquei o dedo no ombro e ele caiu de lado no sofá como um boneco por sinal que atirou ao chão com o cotovelo o candeeiro da nossa falecida mãe aquele transparente que se percebe o fio e lhe deu a senhora onde trabalhou a dias a Dona Márcia da capelista prometeu-me uma cola boa para o consertar demos anteontem o velório e apareceram os vizinhos quase todos o senhor Honório, o chefe Salgado a prima Esmeralda e as sobrinhas que trouxeram a entravada do catorze coitadita numa cadeira de rodas lembras-te que a gente atirava pedras aos caixilhos e ela nos gritava malandros malandros o tio Venâncio dos correios tratou dos documentos da certidão de óbito das facturas paga-se à agência funerária em prestações a propósito se tiveres de parte manda que também era teu pai e não é justo escorregar eu sozinha com o arame houve duas coroas de flores uma pequena fita roxa dos amigos do café e outra minha tão bonita que o Osório do campo de futebol me disse poça menina Otília que me dá ganas de esticar e eu atirei-lhe logo descanse que com a tosse com que você anda não espera muito tempo por isso o funeral meteu carreta padre seis táxis da praça e três automóveis uma colega da fábrica emprestou-me a saia e a mantilha tiveram todos pena que não assistisses e mandam-te sentidos pêsames e cumprimentos oxalá voltes depressa e escorreito que se nota por aí tanto aleijado na rua recebe um abraço da tua irmã Maria Otília Alves Nunes a Deus quinhentos escudos já me davam jeito.

QUOTIDIANOS


Quando se liga a televisão, um dos elementos maiores do entretenimento, há três coisas maravilhosas que acabam: o escuro, o silêncio e a solidão. Decisivas substâncias de que se faz a literatura, de que se faz a poesia. Onde está a música do pensamento no meio desse som e fúria sem contemplações a que se chama entretenimento?
Quando se escolhe ler cinco mil livros na vida, são milhares e milhares de horas que não estão ocupados a ir ao shopping center, à discoteca dançar todas as noites até às quatro da manhã, por aí fora. Portanto essa opção existirá sempre.

António Mega Ferreira em Conversas com Escritores de Inês Fonseca Santos

REQUIEM POR MUITOS MAIOS

´
Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito - os
que nunca souberam nada da própria vida. 

Nuno Júdice

Legenda: pintura de Karen Offutt

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Penso coisas tão profundas e sinto-me tão mal que penso se não serei um Intelectual. E penso coisas tão mal e sinto-me tão profundo que devo ser o Maior Intelectual do Mundo!

Epígrafe de Pensamento de Inventão de Manuel António Pina

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

DEPOIS, LAVAI AS MÃOS


Continuação das histórias do 25 de Abril contadas aos tetranetos:

Imaginem meus queridos tetranetos, o que seria esta liberdade aplicada à comunicação social, para a qual a Constituição tem um artigo próprio, o 38. Vieram a público, nessa época, inúmeros periódicos novos, muitos deles criados apenas para desabafar, para darem oportunidade aos seus promotores para insultarem, para ofenderem, para atacarem, para se divertirem. Só pelos nomes de alguns podereis imaginar a natureza dos seus escritos. Eram O Coiso, O Mariola, o Pé-de-Cabra, O Chato, O Risoto, O Cágado. Certa tarde, encontrava-me no Rossio, e oiço os vendedores de jornais, vindos do Terreiro do Paço, pela Rua Augusta, abraçando os molhos do periódico que tinha acabado de sair, apregoando: “A Merda! Cá está a Merda! Saiu agora A Merda!” Comprei um exemplar e arrumei-o na minha colecção de jornais da Revolução. Está aqui. Ainda um dia o podereis ler. Depois, lavem as mãos.
A liberdade de expressão também se manifestou, e exuberantemente, de um outro modo, que foi o de escrever nas paredes dos prédios, nas pedras dos passeios e até nos monumentos, e não só escrever com fazer pinturas com variadas cores. Naqueles dias andei pelas ruas a fotografar as pinturas das paredes. Conservo-as como recordação mas são de fraca qualidade.
(…)
Mas também havia escritos que merecem, como este: “Abaixo os órgãos de cúpula.” E estoutro , de autoria de algum inimigo do Partido Comunista, então dirigido por Álvaro Cunhal: “Vamo-nos treinar no tiro ao Álvaro.” Aqui no meu bairro, por exemplo, morava, e talvez more ainda, uma menina que seria tratada por Lálá e que se apresentaria aos amigos como simpatizante de um partido de direita, de sigla CDS, dos muitos partidos que então se agitavam, ou seja Centro Democrático Social. A menina de então, que já hoje deve ser quarentona, ficou perpetuada na parede de um prédio de esquina da Rua Coelho da Rocha, onde se lê ainda em letras negras: “A Lálá é CDS”.


Além de palavras escritas também se enchiam as paredes com cartazes dos mais variados. E nada a isso escapava. Passando numa tarde pelo Terreiro do Paço esfreguei os olhos para ter a certeza do que via. As arcadas da Praça estavam literalmente forradas de cartazes. E não só. A estátua equestre de D. José, também em parte. Fotografei uma coisa e outra, e aqui vos deixo a imagem dessas fotografias.
(…)
A liberdade oferecida de surpresa a um povo civicamente atrasado, de elevada percentagem de analfabetismo e acentuado nível de miséria, analfabetismo e miséria que o salazarismo se esforçava por manter como sinais de virtude, o que muitas vezes foi exaltado pelos deputados do Parlamento da época, iria essa, liberdade, originar situações de grande desequilíbrio social, como de facto se verificou.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


O  Caso daQuinta Avenida é o nº 13 da nova série da clássica Colecção Vampiro, de novo publicada por Livros do Brasil, mas agora englobada no grupo editorial da Porto Editora.

Tem tradução de Fernando Pessoa, completada por Catarina Rocha Lima. 

A páginas 134 desta edição pode ler-se:

«Aqui termina a parte traduzida por Fernando Pessoa, mas os seus critérios e opções, tanto quanto possível, continuarão a ser respeitados até ao fim do romance, embora não seja pretensão da tradutora imitar o grande escritor. Assim, notará o leitor, por certo, mudança de estilo que, a partir deste ponto, será, não o de Fernando Pessoa, mas tão-só, o próprio da tradutora que recebeu o pesado encargo de completar a obra por ele iniciada.»

Segundo informação prestada pelo editor, no final desta desta edição, a tradução de Fernando Pessoa apareceu, sob a forma de folhetim, no jornal diário O Sol, cujo director era Celestino Soares, tendo sido publicados apenas trinta e três números, entre 30 de Outubro de 1926 e 1 de Dezembro do mesmo ano. O curto período de vida de O Sol apenas permitiu a publicação de cerca de um terço do livro e o fim do jornal levou, por sua vez, ao fim da tarefa de tradução de Fernando Pessoa.

Na primeira série da colecção O Caso da Quinta Avenida tinha o nº 562.

A nova série da Colecção Vampiro começou com Os Crimes do Bispo de S.S. Van Dine, cuja primeira publicação já aqui foi apresentada com capa de Cândido Costa Pinto.


A velha Colecção Vampiro, que começou em 1947, abre com Agatha Christie e o seu Poirot Desvenda o Passado, teve o seu epílogo em 2007 com o número de colecção 703 que corresponde a Do Álbum de Um Detective da autoria de Headon Hill.

Apetece dizer que, casa que se preze, guarda no seu interior um qualquer livro da Colecção Vampiro.

São fantásticas as capas de Cândido da Costa Pinto, algumas verdadeiras obras de arte, interessantes também as de Lima de Freitas mas, verdadeiramente, a cereja no topo do bolo são as capas de Cândido Costa Pinto que as desenha até ao número 104 da colecção, enquanto que as de Lima de Freitas vão do número 105 até ao número 325.

A partir daqui as capas perdem qualidade, alguns volumes mencionam que as capas são de autoria de A. Pedro e grande parte são de um péssimo gosto, muitas a resvalar para a pornografia pura e dura, com o mero propósito de chamar a atenção com vista à fácil compra. 

Diga-se também que as traduções não primavam pela qualidade. A maior parte seguia a edição brasileira, revistas, em cima do joelho, para português.

A Vampiro seguia o lema que tudo o que viesse à rede era peixe e daí encontramos, na colecção, autores da segunda, terceira e quarta divisão do Romance Policial.

Mas, no fundo dos fundos, o balanço final é positivo.

Manuel Alberto Valente, responsável editorial da nova série da Vampiro, revelou  ao Diário de Notícias que «as capas tendem a assumir o estilo retro e vintage da coleção inicial mesmo que executadas por um designer actual».

Quanto às traduções, a maioria das novas edições irão recuperar as antigas versões, mas alerta para alterações muito significativas: «Serão fortemente revistas e o texto será integral, situação que nem sempre se verificava pois eram feitos cortes em certas partes para caber na paginação. Desta vez, serão publicados os textos originais.»

Legenda: contracapa de O Caso da Quinta Avenida

OLHAR AS CAPAS


O Caso da Quinta Avenida

Anna Katharine Green
Tradução: Fernando Pessoa e Catarina Rocha Lima
Capa: Luís Alegre
Colecção Vampiro nº 13 (Nova Série)
Livros do Brasil, Lisboa, 2017

Divertido, mas um pouco desconcertado, por este súbito desvio de conversa, olhei interrogativamente para o chefe Gryce.
- Ora, o senhor, naturalmente – exclamou ele -, nasceu nessa classe. É mesmo capaz de convidar uma senhora para dançar sem ficar corado, hein?
Ri francamente, e ia começar a falar, mas ele prosseguiu:

- É claro. Ora aí está uma coisa que eu não sou capaz de fazer. Sou capaz de entrar numa casa, cumprimentar a dona dela, seja ela a criatura mais elegante deste mundo, logo que leve comigo um mandadozito de captura, ou qualquer outro trabalhinho profissional; mas quando se trata de ir fazer visitas de luvas de pelica, ou erguer a minha taça, como eles lá dizem, para responder a um brinde, e outras lérias assim, já não sirvo para nada.

OLHARES


Dedicatória de José Gomes Ferreira em O Mundo dos Outros para Mário Dionísio e sua mulher Maria Letícia, presente na Exposição Passageiro Clandestino que esteve patente no Museu do Neo Realismo de 14 de Maio de 2016 a 26 de Fevereiro de 2017. 
Zé Gomes dizia que o livro talvez já esteja morto e que a única parte viva era o prefácio que Mário Dionísio escreveu, em 1978, para a 7ª edição de O Mundo dos Outros.
A 1ª edição é de 1950. 
Tenho a edição de 1961, Colecção das Três Abelhas das Publicações Europa-América e que por um destes dias ocupará um Olhar as Capas.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

OLHAR AS CAPAS


A Paixão Segundo José Saramago

Conceição Madruga
Prefácio: Mário David Soares
Campo das Letras, Porto, Março de 1998

Os livros de Saramago abertos sobre a mesa são uma rememoração, um chamamento. Convidam-nos à viagem, em busca do fio que nos conduza no labirinto do conhecimento de nós, do mundo do Conhecimento. Viagem inaugural, redentora e de retorno à infância, na acepção de Blanchot: “Continuamos a ler. Desde há milénios, como se mais não fizéssemos do que começar a aprender a ler.”
Saramago revela-se-nos, desde logo, o contador da História e de histórias, que nos fascinam e nos apaixonam. É a grande Voz e o grande Olho, dizendo o que ouviu e viu, lá em nenhum lugar, nem em nenhum tempo, porque, como ele próprio refere, !tudo provavelmente são ficções”.

RECUSOU PERCEBER E ACEITAR


Carta escrita em S. Domingos de Rana, sem data mas com horas: «Quatro e meia da manhã, como irremediavelmente de costume». E estre começo:

«Isabel querida, doce presença de quando estou só.»

Mário narra que estivera, num serão, na casa do escritor Manuel da Fonseca: «Poker, claro. Poker e brandy. Abundância das duas coisas»

Adiante:

Isabel, é assim. Agora estou aqui e queria ver-te. Não pode ser, claro, sejamos ajuizados e muito dignos. Como não pode ser e eu sou ajuizado, escrevo-te. Não sei até que ponto te aborrecerei ou te darei prazer. Não faz mal, um dia saberei.
Isabel, querida menina sorridente tão suavemente feminina, como eu gostava agora que fosses tu quem me sorrisse quando eu fosse até lá dentro, como eu desejaria passar um braço pelos teus ombros, esfregar a cara nos teus doces cabelos, beijar-te com carinho e proteger-te com a força que sinto no meu corpo e que queria poder dar-te! Isabel, Isabel, estou agora, nesta idade e nesta solidão, a dizer-te o que até hoje tive guardado e que não pude dar a ninguém, nem sequer à Dietlinde porque ela recusou sempre perceber e aceitar. Querida, creio que em certa altura começo a ser ridículo, com isto de te querer dizer tudo o que está em mim. Olha, se assim for, afinal nada mais peço do que cumprir o vaticínio do nosso estimado Fernando Pessoa:

Todas as cartas de amor
são ridículas.
Se não fossem ridículas,
não eram cartas de amor,
ridículas.

E pronto, aqui estou eu justificado à custa do ilustre vate. Além disso, escrever uma carta de amor é bom, é um aviso de que ainda estamos vivos e continuamos a acreditar que vale a pena está-lo.

Pelo (não) ridículo das cartas de amor, fica aqui uma nota de rodapé tirada do Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago, publicado em 1984, que Mário-Henrique Leiria não leu, pois deixou-nos em Janeiro de 1980:

«… não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.»

Legenda: pintura de François Clouet