Os pensamentos
pastam na verdura,
balindo mansamente em torno dele,
e o rio corre sussurrante em pedras
que as sombras do arvoredo fazem negras.
Numa árvore se encosta o tronco magro
que os cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto as finas ancas pousam na verdura
e de uma sombra entre elas pende uma brancura.
Delicados e firmes, os lábios se contraem
na tersa flauta em que os seus dedos dançam
ao mesmo tempo segurando-a leves.
Quase é silêncio a curta melodia.
Do fundo e vítreo azul que imobiliza
o campo e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo em asas, garras, bico adunco
entreaberto à frente de sanguíneos olhos.
E adeja no alto, imensa e monstruosa,
uma ave gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os faz fugir, dispersos, assustados.
A melodia se suspende. O pastor olha.
Numa surpresa vê que as asas se desabam
sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando abre os olhos, elas voam vastas
entre ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.
Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico hiante à sua boca chega
numa doçura a atormentá-lo inteiro.
E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.
Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro.
E mais: sem que o soubesse, aquele humano estava
já destinado às garras longamente curvas?
Ou por acaso foi que o deus se apaixonou?
E essa paixão durou? E que destino teve
o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos.
Jorge de Sena em Perigrinatio Ad Loca Infecta
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