Este
não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões,
de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que
irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que
aconteceram.
Somos, ou fomos, o país dos três efes?
Futebol, fado e fé.
Os três pilares com que Salazar construiu o Estado Novo.
Ainda hoje, quando se pretende referir que os portugueses pouco ou nada
se interessam por assuntos da sociedade em que vivem, assuntos do mundo, os
três efes vêm à baila.
A viagem de hoje passa pelo fado e quando de fado se fala, sobe à mesa do nome de Amália Rodrigues.
Para mim, o nome de Amália torna-se referência pela descoberta que dela
fez o músico Alain Oulman.
O álbum Com que Voz marca essa diferença, quase genial.
Essa mesma voz, os poetas que canta, a música de Oulman.
O álbum «Busto» marca o início da colaboração com Alain Oulman.
Chama-se assim pela estatueta de Amália na capa, da autoria de Joaquim Valente,
fotografia de Nuno Calvet.
No disco há um poema de David Mourão-Ferreira Abandono, também
conhecido como Fado de Peniche, inspirado na fuga de Álvaro, juntamente com outros
camaradas , do Forte de Peniche:
Por teu livre
pensamento
Foram-te longe encerrar
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu
lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da
noite
A treva tudo cobria
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa
noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
Ao menos ouves o vento
Ao menos ouves o mar
Ao menos ouves o vento
Ao menos ouves o mar
Amália Rodrigues é uma voz única, uma personagem deveras interessante.
Numa longa entrevista com o escritor Manuel da Fonseca, este diz-lhe:
«Li sobre o Fado, as
origens, as consequências, a aceitação de um povo de índole vencida. Li uma
data de coisas: já há muitos anos e, agora, uns bocados. As classes sociais
intelectuais do nosso país atiraram sempre com o Fado para trás, nunca o
quiseram. Era um estigma de um povo, era uma forma de recuo, uma forma negativa
de cultura de um povo. A partir de certa altura, esses mesmos, pertencentes a
essa classe, foram ter consigo e acharam que você representava essa tal forma
negativa. Em resumo, vou-lhe dizer as coisas de um modo surreal: nem mil
Secretariados de Propaganda, a trabalharem durante mil anos, arranjavam um
produto que lhes foi parar às mãos, que é você».
Durante a sua vida deram-na como salazarista, mas poucos sabiam que
ajudava, não só monetariamente, os perseguidos e presos políticos.
Quando Salazar, em coma, no Hospital da Cruz Vermelha, aguardava o
tempo de morrer, Amália Rodrigues enviou-lhe um cesto de rosas e umas quadras:
Ponha-se bem depressa
Meu querido presidente
Depressa, que essa
cabeça
Não merece estar
doente.
Não sei de
regulamentos
E se isto é má criação
Perdoe o procedimento
E aceite a intenção.
A censura proibiu, fosse onde fosse, a publicação destas quadras,
Em Junho de 1972,
numa entrevista a Guilherme de Melo, publicada no «Notícias de Lourenço
Marques», Amália disse:
«Já tenho uma idade e já cheguei a uma altura da minha
vida como mulher e da minha carreira como artista em que não precisos de me
agarrar às «direitas» para subir ou às «esquerdas» para me evidenciar.»
Mário Sacramento no seu Diário, entrada datad de 6 de Junho de 1968 que surge a propósito
de um Congresso de Radiologia, realizado na Aula Magna da Reitoria de Lisboa:
«Às tantas, mas no salão, cantou a Amália. Se bem que
deteste o fado, emocionou-me. Tem nervo, tem arte – é da raça dos eleitos.
Transforma em oiro o metal mais vil. Toda de negro, como manda a praxe, mas com
um cinturão de oiro, a maior beleza do seu rosto está na tensão que imprime à
jugular, quando canta. Nenhum outro excesso. A boca é duma sensualidade incrível
– toda a boca e não o lábio inferior apenas. Alguns dentes mais escuros ou
deteriorados sublinham a sua verdade. Gaforina de leoa. Simplicidade sem
embustes. E muito, muito carvão nos olhos, ora extinto, ora em labaredas.».
Jorge Calado:
«Se é verdade que comecei por achar o fado harmoniosamente
pobre, a minha admiração por Amália nunca deixou de crescer. Aliás, dizia-se
que o que ela cantava não era fado… Com coração independente, violava as regras
todas e seguia em frente.»
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