sexta-feira, 22 de março de 2024

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 

Leitor compulsivo que quase sou, terei comprado livros pelos autores em si, por capas, por começos, por finais, por uma qualquer frase lida no folhear de um livro nos escaparates das livrarias.

Há meses comprei um livro pela sua contra capa.

Desconhecia, por completo, o seu autor

Chama-se Lars Gustafsson  e o livro, já aqui colocado em Olhar as Capas, chama-se A Morte de um Apicultor.

Esta é a frase que me chamou a atenção: «Recomeçamos, não nos rendemos.»

Um professor de escola Primária que se chama Lars Lennart Westin, conta a sua história perante a eventualidade da sua morte.

Sabe que tem um cancro, mas recusa-se a ler a carta que o Hospital lhe há-de enviar, tão pouco sabe se essa carta confirma, ou não,  o diagnóstico.

Vagarosamente, sabe que não irá viver até ao final da primavera seguinte.

«Quando a carta do hospital regional chegou, pu-la de lado e fui dar um passeio. Sentia-me perfeitamente tranquilo, enquanto contemplava as árvores, já sem folhas, ao longo do caminho. Adoro estes ramos despidos contra o céu cinzento, cor de chumbo. Parecem letras de uma língua desconhecida, que tentam dizer algo. Ou a carta anuncia-me que não se trata de nada de grave. Ou vem dizer-me que tenho um cancro e que vou morrer. O mais provável, claro, é o cancro.»

(Pág. 28)

«Se esta carta contém a minha morte,  recuso-a.

Não devemos querer nada com a morte. Tive a sorte de aprender isto muito cedo, e é algo que me tem sido útil ao longo da vida.»

(Pág. 31)

«Quando a carta chegou finalmente, não a bri logo. Decidi dar um longo passeio com o cão e refletir sobre o caso. A paisagem era a mesma, muito cinzenta, árvores nuas com patéticos ramos cor de chumbo. Uma espessa camada de gelo com neve húmida sobre o lago; enfim, fevereiro.

Fiquei bastante tempo a olhar para o envelope, a apalpar a sua espessura, a avaliar o seu peso, até que, de repente, começou a fazer muito frio na cozinha, porque a salamandra estava apagada por falta de lenha. Quando finalmente levantei os olhos, já escurecia. A tarde já ia bem adiantada. Uma daquela tardes típicas de fevereiro em que anoitece pelas quatro da tarde.

Acabei por ir buscar lenha e pus a salamandra a funcionar.

Utilizei a carta para acender o lume.»

(Pág. 35)

«Como queimei essa maldita carta tenho de assumir sozinho toda a situação. Terei de lutar só, terei a minha própria morte.»

(Pág.  84)

«No entanto, começo a perguntar-me em que me fui meter ao queimar, por exemplo, a carta do laboratório do hospital sem a abrir.»

(Pág, 105).

 

Perante a morte faltam sempre palavras.

«Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la

pormenorizadamente.»

Escreveu, um dia, Herberto Helder.

Sabemos: todos vamos morrer,  e em cada dia vamos morrendo um bocadinho.

 Há uma frase  de Vitor Cunha Rego, que foi, entre outras coisas, director do Diário de Notícias:

«A pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.».

E, neste livro, é o que faz o seu autor.

Enquanto prepara a morte, haverá momentos em que talvez pense que os mortos só sabem uma coisa: é melhor estar vivo

Palavras finais deste curioso e muito interessante  livro:

«Já estamos na segunda semana de maio e, no entanto, hoje neva em todod a  Vastmanland. Uma ambulância vem buscar-me às quatro da tarde. Espero que não haja muito gelo na estrada.

Podemos esperar que não haja nenhum acidente.

Podemos sempre esperar».

3 comentários:

Seve disse...

Lars Gustafsson, professor de filosofia, esteve em Portugal para o lançamento do seu segundo livro, A TARDE DE UM LADRILHADOR, em 1994.
Também já publicado em Portugal "A AMANTE COLOMBINA".
Deste sueco apenas li este A MORTE DE UM APICULTOR e, para mim, considero um livro a não perder; já não gostei tanto da AMANTE COLOMBINA.
Ainda a propósito deste professor de filosofia (que creio ter falecido em 2016), ó Sammy tem de ler o grande livro que é "STONER" de John Williams. Stoner é um obscuro professor de literatura...

Sammy, o paquete disse...

Antes da leitura de «A Morte de um Apicultor» desconhecia o seu autor. A pesar dessa minha ignorância, tão pouco dei pela sua passagem por Lisboa. A mim próprio digo muitas vezes que, apesar de tantas leituras, serei sempre um eterno desconhecer de outros autores e livros.
Quanto ao John Williams já li o «Stoner» e já o coloquei em «Olhar as Capas» de 30 de Abril de 2022. Mas tenho de lá voltar. Ficou muito por decifrar e compreender. Felizmente!...

Seve disse...

Ó Sammy não tenhas dúvidas que (recorrendo a um chavão que li algures) quanto mais lês mais alargas o campo da tua ignorância.