sexta-feira, 29 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 

             Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


O que acima se vê, é um pormenor da 1ª página do semanário Cinéfilo nº 27, da semana 6-12 de Abril de 1974.

Ainda não se tinham apagado todos os sons, todos os sentimentos do espectáculo de Patxi Andión no Coliseu, e a 29 de Março realizava-se o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa, que entendera substituir a habitual “Grande Noite do Fado”,e à reportagem-crítica desse espectáculo, a rapaziada do Cinéfilo, colocava em título: EM BUSCA DA FESTA!

Que festa?

José Saramago já, anos antes, 1966, anunciava que, num qualquer dia  chegaria o DIA DAS SURPRESAS.

Entre outros participaram na festa: Carlos Paredes, José Carlos Ary dos Santos, José BarataMoura, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Manuel Freire, Fernando Tordo, Fausto, Vitorino.

O crítico e radialista Mário Contumélias estava encarregado de contar aos leitores cinéfilos, o que nessa noite iria acontecer na velha sala das portas de Santo Antão e para ele mesmo dissera que aquilo talvez redundasse numa «pepineira intragável», mas fecha a abertura do texto deste modo:

«E agora que aquilo já passou, há uns dias largos, ainda guardo em mim uma grande emoção, Fosse lá porque fosse, naquela noite no Coliseu, senti-me. E isso não nos acontece todos os dias. Isso é importante!»

Dois pormenores da reportagem:

«E entrou José Carlos Ary dos Santos. Entrou no palco entre assobios e aplausos. Pense eu o que pensar do Ary como poeta ou como declamador, a verdade é que ele tem muita força. Eu venho cá dizer poesia. Se não gostarem manifestem-se no fim.

E a malta manifestou-se. Aplaudindo o Soneto Presente. Com dois poemas, Zé Carlos, face à insistência do público, diz um terceiro, o Retrato de Alves Redol.»

«Quando, depois do Adriano acabar de cantar, José Afonso se aproximou do microfone, as palmas rebentaram.

Venho aqui cantar uma canção GRÂNDOLA, disse Zeca.

Cerraram-se as luzes, e toda a sala, todos os 5 mil, de pé entoaram em coro os versos da canção. Braços dados, corpos balanceando, pés batendo no chão.

Quando o Zeca acabou, o público ficou lá, erguido ainda, nos camarotes, na galeria, na plateia, na geral, em todo o lado onde cabia mais um.»

Naquela noite, sob forte vigilância policial e pidesca, mais de cinco mil pessoas, entoaram espontaneamente, Grândola, Vila Morena, ironicamente uma das duas canções que a censura permitiu que, nessa noite, José Afonso cantasse. A outra seria Milho Verde,
mas «Grândola», canção de José Afonso, (incluída em Cantigas do Maio , de 1971, e interpretada pela primeira vez ao vivo em Santiago de Compostela, na Galiza ) posteriormente, escolhida pelos militares do MFA como segunda senha de arranque da Revolução dos Cravos.

 Não há machado que corte a raiz ao pensamento, um entusiasmo delirante e o espectáculo a encerrar com todos os artistas participantes a cantarem, com toda a sala de pé, braços dados, Grândola Vila Morena, ao ponto de Regina Louro escrever na Flama de 12 de Abril: “Até as luzes de gala se acenderam, para esse espectáculo-participação”.

Aquela noite fazia já antever o que, uma vintena de dias depois, veio a acontecer: o consumar do grito do poeta à rapariga, para que ela não esquecesse que um dia iriam soltar a Primavera no País de Abril, o microfone que falaria numa noite às 4 e tal… a madrugada donde um país emergiu da noite e do silêncio.

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