Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos,
poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem
obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
No dia 30 de
dezembro de 1972, um grupo de católicos, a que se associariam não católicos,
organiza uma vigília de 48 horas, na Capela do Rato, em Lisboa, para meditar
sobre a paz e sobre a situação vivida nas guerras coloniais.
No dia seguinte, os
participantes aprovam uma moção repudiando a política do Governo de “prosseguir
uma guerra criminosa com a qual tenta aniquilar movimentos de libertação das
colónias” e denunciando a “cumplicidade da hierarquia da Igreja Católica face a
esta guerra”.
Ao final do dia, a
vigília é interrompida pelas forças policiais e os participantes são conduzidos
à esquadra local, sendo que 14 permaneceriam detidos durante duas semanas na
prisão de Caxias. Os funcionários públicos presentes seriam alvo de processos
de demissão, conforme decidido em Conselho de Ministros.
Os acontecimentos da
Capela do Rato marcam um dos mais significativos episódios da luta contra a
ditadura. O regime via-se confrontado com mais uma frente de protesto e luta,
vinda donde menos esperaria: do seio da Igreja Católica, um pecado
organizado, tal como diz Sophia.
Nunca a voz da Igreja se fizera ouvir para condenar a guerra colónia, as
perseguições da PIDE, a tortura e a morte. Os acontecimentos da Capela do Rato
determinaram que nada seria como antes: estes católicos e não católicos,
acusados pelo governo, como traidores à Pátria, diziam ao país
que viam ouviam e liam e não mais poderiam continuar a ignorar.
Entre as cerca de
setenta de pessoas detidas pela PIDE na Capela do Rato, encontravam-se
doze funcionários públicos que, por decisão do Conselho de Ministros, publicada
no Diário do Governo de 13 de Janeiro, foram demitidos das suas funções.
Em 20 de Janeiro os
funcionários demitidos recorreram da decisão governamental.
Em 23 de Fevereiro
de 1973, por resolução do Conselho de Ministros, negou provimento ao recurso
apresentado pelos funcionários públicos.
No dia 11 de Janeiro
de 1973, o Diário de Lisboa, publica uma Nota do Patriarcado
acerca dos protestos de católicos, e não católicos:
Uma carta do Padre
Sampaio para o Padre Bertulli:
«Sinto-me reduzido a uma igreja de silêncio, em que a
verdade é escondida e o Evangelho traído descaradamente».
Algures no tempo, Manuel António Pina escreveu:
«Porque houve um tempo em que tivemos esperança. E, provavelmente, fé. Um tempo em que acreditámos em coisas maiores, em palavras e ideias por que valia a pena morrer. Também, no entanto, as nossas palavras, mesmo as mais desmesuradas, sucumbiram à trivialidade e à pequenez. E hoje olhamos em volta e vemos muitos dos que connosco partilharam a confiança e a esperança entre as piores dos porcos, dos feios e dos maus.»
Marcelo Caetano
determinou que nada, do que se passou na Capela do Rato, seria publicado nos
jornais, rádios e televisão.
Apenas um comunicado
do governo a dizer que os funcionários públicos, demitidos das suas
funções pelo governo, tinham recorrido da decisão para o conselho de ministros,
também, após largas discussões do Cardeal Patriarca com o ministro do interior,
uma confusa nota do Patriarcado do que então se tinha passado na Capela do
Rato.
O Notícias
de Portugal era um boletim semanal, da responsabilidade do SNI,
enviado para os emigrantes portugueses espalhados pelo mundo. Do que passou na
Capela não tiveram qualquer informação. Apenas no discurso de encerramento da
reunião anual da Acção Nacional Popular, Marcelo Caetano faz uma
curta e destemperada observação:
«A sociedade portuguesa, habituada durante muitos anos à
protecção paternalista, não estava preparada para um ambiente de discussão e de
luta. Ao ímpeto dos contestatários não se tem oposto mais que hesitante
comodismo ou frouxa resistência. Muita gente julga até que tudo – turbulência,
desmoralização, demolição – tudo é abertura, tudo está no jogo, tudo faz parte
do novo estilo de governo…
Ingènuamente as pessoas querem então estar à moda. Não
desejam que as considerem «ultrapassadas». É preciso andar com os novos tempos…
e deixam correr ou apressam-se a dizer - «ámen».
Por isso há padres que deixam de pregar o Evangelho para
fazer no púlpito a apologia da revolução social, demitem-se os pais da
autoridade familiar, as audácias dos costumes chocam cada vez menos os
moralistas, professores resignam-se à indisciplina, entram chefes em dúvida
acerca da legitimidade do exercício da sua autoridade, olha-se com timidez a
acção dos que procedem contra a ordem e contra alei e quase se tem pudor de
aplicar sanções ou de usar os meios normais de reprimir ou contrariar as manobras
de perturbação ou de obstrução da vida das instituições.»
No LP Canções
da Cidade Nova de Francisco Fanhais, encontra-se Cantata
da Paz, poema de Sophia Mello Breyner Andresen e música de Rui Paz,
cantada na vigília da Capela do Rato.
«Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D’África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.»
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