quarta-feira, 13 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL

 

                   Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                           João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


No dia 30 de dezembro de 1972, um grupo de católicos, a que se associariam não católicos, organiza uma vigília de 48 horas, na Capela do Rato, em Lisboa, para meditar sobre a paz e sobre a situação vivida nas guerras coloniais.

No dia seguinte, os participantes aprovam uma moção repudiando a política do Governo de “prosseguir uma guerra criminosa com a qual tenta aniquilar movimentos de libertação das colónias” e denunciando a “cumplicidade da hierarquia da Igreja Católica face a esta guerra”.

Ao final do dia, a vigília é interrompida pelas forças policiais e os participantes são conduzidos à esquadra local, sendo que 14 permaneceriam detidos durante duas semanas na prisão de Caxias. Os funcionários públicos presentes seriam alvo de processos de demissão, conforme decidido em Conselho de Ministros.

Os acontecimentos da Capela do Rato marcam um dos mais significativos episódios da luta contra a ditadura. O regime via-se confrontado com mais uma frente de protesto e luta, vinda donde menos esperaria: do seio da Igreja Católica, um pecado organizado, tal como diz Sophia.

Nunca a voz da Igreja se fizera ouvir para condenar a guerra colónia, as perseguições da PIDE, a tortura e a morte. Os acontecimentos da Capela do Rato determinaram que nada seria como antes: estes católicos e não católicos, acusados pelo governo, como traidores à Pátria, diziam ao país que viam ouviam e liam e não mais poderiam continuar a ignorar.

Entre as cerca de setenta de pessoas detidas pela PIDE na Capela do Rato, encontravam-se doze funcionários públicos que, por decisão do Conselho de Ministros, publicada no Diário do Governo de 13 de Janeiro, foram demitidos das suas funções.

Em 20 de Janeiro os funcionários demitidos recorreram da decisão governamental.

Em 23 de Fevereiro de 1973, por resolução do Conselho de Ministros, negou provimento ao recurso apresentado pelos funcionários públicos.

No dia 11 de Janeiro de 1973, o Diário de Lisboa, publica uma Nota do Patriarcado acerca dos protestos de católicos, e não católicos:

Uma carta do Padre Sampaio para o Padre Bertulli:

«Sinto-me reduzido a uma igreja de silêncio, em que a verdade é escondida e o Evangelho traído descaradamente».

Algures no tempo, Manuel António Pina escreveu:

 «Porque houve um tempo em que tivemos esperança. E, provavelmente, fé. Um tempo em que acreditámos em coisas maiores, em palavras e ideias por que valia a pena morrer. Também, no entanto, as nossas palavras, mesmo as mais desmesuradas, sucumbiram à trivialidade e à pequenez. E hoje olhamos em volta e vemos muitos dos que connosco partilharam a confiança e a esperança entre as piores dos porcos, dos feios e dos maus.»

Marcelo Caetano determinou que nada, do que se passou na Capela do Rato, seria publicado nos jornais, rádios e televisão.

Apenas um comunicado do governo  a dizer que os funcionários públicos, demitidos das suas funções pelo governo, tinham recorrido da decisão para o conselho de ministros, também, após largas discussões do Cardeal Patriarca com o ministro do interior, uma confusa nota do Patriarcado do que então se tinha passado na Capela do Rato.

Notícias de Portugal era um boletim semanal, da responsabilidade do SNI, enviado para os emigrantes portugueses espalhados pelo mundo. Do que passou na Capela não tiveram qualquer informação. Apenas no discurso de encerramento da reunião anual da Acção Nacional Popular, Marcelo Caetano faz uma curta e destemperada observação:

«A sociedade portuguesa, habituada durante muitos anos à protecção paternalista, não estava preparada para um ambiente de discussão e de luta. Ao ímpeto dos contestatários não se tem oposto mais que hesitante comodismo ou frouxa resistência. Muita gente julga até que tudo – turbulência, desmoralização, demolição – tudo é abertura, tudo está no jogo, tudo faz parte do novo estilo de governo…

Ingènuamente as pessoas querem então estar à moda. Não desejam que as considerem «ultrapassadas». É preciso andar com os novos tempos… e deixam correr ou apressam-se a dizer - «ámen».

Por isso há padres que deixam de pregar o Evangelho para fazer no púlpito a apologia da revolução social, demitem-se os pais da autoridade familiar, as audácias dos costumes chocam cada vez menos os moralistas, professores resignam-se à indisciplina, entram chefes em dúvida acerca da legitimidade do exercício da sua autoridade, olha-se com timidez a acção dos que procedem contra a ordem e contra alei e quase se tem pudor de aplicar sanções ou de usar os meios normais de reprimir ou contrariar as manobras de perturbação ou de obstrução da vida das instituições.»

No LP Canções da Cidade Nova de Francisco Fanhais, encontra-se Cantata da Paz, poema de Sophia Mello Breyner Andresen e música de Rui Paz, cantada na vigília da Capela do Rato.

 

«Vemos, ouvimos e lemos

Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos

Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos

Relatórios da fome

O caminho da injustiça

A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima

Vergonha de nós todos

Reduziu a cinzas

A carne das crianças

D’África e Vietname

Sobe a lamentação

Dos povos destruídos

Dos povos destroçados

Nada pode apagar

O concerto dos gritos

O nosso tempo é

Pecado organizado.»

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