Este não é o dia seguinte
do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
Hoje, esta viagem começa com um toque de ordem pessoal.
Apesar de diversas tentativas, não consegui bilhete para o espectáculo de Patxi Andión no Coliseu no dia 23 de Março de 1974.
A verdade: o acto de cantar é um acto que
responsabiliza a pessoa que canta e os que a escutam.
Isso, e algo mais, muito mais, era Patxi Andion, o mestre que cantava com todo o mar por trás.-
Tentou cantar duas vezes em Portugal mas
puseram-no na fronteira.
Mas às três foi de vez. O semanário Cinéfilo, na secção “Sete Dias da Semana”, entre outras coisas tão abonatórias como justas, dizia que era um espectáculo, pela qualidade certa, a não perder.
Uma semana depois, também no Cinéfilo, Eduardo Guerra Carneiro, escrevia sobre o espectáculo:
«Quatro mil estavam no Coliseu. Silêncio, luzes e palmas. Toda a força
possível: verde que te quiero verde. Estavam todos lá. Com ele. Assim, tudo
poderia estar definitivamente em tudo. Todos estarmos em tudo e todos sermos
afinal tudo, maneira de dizer: todos com todos. O que sentimos ao sentirmos
tudo. Sentimento total.
A palavra exacta, minuto a minuto. Não perder o sentido, a exacta procura de
todos, de tudo. A calma violência da total aventura: ondas e não uniforme
paisagem. Patxi junto ao mar, a pequena aldeia, a mesa de madeira, o copo de
vinho tinto, o sol, a tarde, o domingo a escorrer, como azeite, sobre os
homens, as coisas, as palavras. Palavras claras de Patxi que podem corresponder
a um copo que se oferece, a uma fatia de pão que se recebe.
Espectáculo? Total Participação? Comoção. Plenitude, talvez. O pão a crescer na
terra, o corpo a corpo da poesia e da canção. Um homem simples frente a 4 mil
portugueses.»
O escritor César Oliveira também esteve
nessa noite no Coliseu, e deixou registo no seu livro de memórias Os Anos Decisivos:
«Este clima que andava no ar, este “sentir na pele” de que alguma coisa teria de acontecer, a seguir ao fracasso do 16 de Março, foi exemplarmente experimentado num espectáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com o cantor basco Patxi AndionA sala estava, literalmente, a abarrotar. Agentes da PIDE/DGS circulavam na sala, nos corredores, na rua do Coliseu. Perto, por detrás do Teatro Nacional, carrinhas da Polícia de Choque. Patxi Andión percebeu e sentiu o clima electrizante que se viveu e “puxou” e tornou a “puxar” pelo público. Ao cantar “El Maestro” – “al explicar una guerra/siempre se muestra remiso/explicando claramente/quien venció y fue vencido” – praticamente toda a vasta sala, desde a plateia aos camarotes, balcão e geral, estava de pé, punhos erguidos, soltando-se algumas vozes em “Viva a Liberdade! Abaixo o Fascismo!” Foi, sem sombra de dúvidas para qualquer espécie, um dos momentos mais altos e com uma carga dramática e épica mais intensa que até hoje pude ver num espectáculo musical.”
Patxi Andion morreu em 19 de Dezembro de
No jornal Público de 23 de Março de
1984, fazia-se a evocação do mesmo dia, dez anos atrás. A coordenação pertencia
ao jornalista Cesário Borga que deu a palavra ao radialista e jornalista
Adelino Gomes:
«Um oficial
procura-me na “Seara Nova”, Alguém lhe dissera que eu tinha trabalhado na RTP e
que era um homem ligado à rádio. A pergunta veio directa: “É capaz de me fazer
o croquis das instalações da Televisão do Lumiar»”. Fiz um sumário das
instalações e o oficial instou-me para lhe dar pormenores sobre os polícias que
lá prestavam serviço e as armas que usavam, as horas do fecho da e missão, o
número indispensável para pôr uma emissão, no ar, etc., etc. Foi quando lhe
perguntei para que era aquilo tudo. Prontamente o oficial respondeu: “vamos dar
um golpe de estado dentro de dias e precisamos de ocupar a Televisão”.
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