Não sei se
José Saramago pertencia àquelas minorias que sabiam que o 25 daquele mês de Abril iria acontecer.
Nas páginas
finais daquele livro de Saramago de que poucos gostam, «Manual de Pintura e
Caligrafia»«Manual de Pintura e Caligrafia», - «Mas o que é o Saramago sabe de pintura?», gracejou Mário
Soares quando viu o livro nos escaparates Livraria Moraes.
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«Começo a formar a primeira tinta na
paleta. Não é uma cor intermédia que eu precise de compor e harmonizar, como as
vozes do «Magnificat» de Monteverdi que neste momento enchem o atelier. Limito-me
a espremer o tubo generosamente, sem poupar. Preto. Agora para revelar, não
para esconder. Trabalharei todo o dia.
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«O regime caiu. Golpe militar, como se
esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a
felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo.
Estou neste momento sozinho: M. foi encontrar-se com alguém do Partido, não sei
onde. Vai acabar a clandestinidade. O meu auto-retrato já está muito adiantado.
Dormíamos em minha casa, M. e eu, quando o Chico, noctívago, telefonou, aos
gritos, que ouvíssemos a rádio.
Levantámo-nos de um salto (estás a
chorar, meu amor?): « Aqui Posto de Comando das Forças Armadas. As Forças
Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa...»
Abraçámo-nos (meu amor, estás a chorar), e embrulhados no mesmo lençol, abrimos
a janela: a cidade, oh, cidade, ainda noite por cima das nossas cabeças, mas já
uma claridade difusa ao longe. Eu disse: ”Amanhã vamos buscar o António.” M.
apertou-se muito contra mim.
”E um dia destes dar-te-ei uns papéis
que aí tenho. Para leres.” ”Segredos?”, perguntou ela, sorrindo. «Não. Papéis.
Coisas escritas.»
A editora
Carmélia Âmbar, na longa conversa com João Céu e Silva, página 39:
«Também gosto do Manual de Pintura e
Caligrafia, onde se observa como já era um esplêndido escritor apesar de não
ser ainda reconhecido.»
«O romance é um bom romance», José Manuel Mendes.
«O Manual é um livro subvalorizado, passou despercebido» - Carlos Reis
«O Manuel é um grande livro, é a minha
opinião.»-
Baptista-Bastos
«Manual é o cadinho de elaboração de
todas as tendências préficcionais de José Saramago, e daí a sua grande
importância e originalidade na consideração evolutiva da sua obra.» - Maria Alzira Seixo.
Se isso tem
algum valor, também gosto muito do Manual de Pintura e Caligrafia.
Pilar
del Rio, numa recente entrevista a um jornal argentino:
«Naquela
época, os telefones nas casas modestas costumavam estar colocados no corredor,
de maneira que José Saramago deve ter saltado da cama, talvez com um mau
pressentimento, para atender aquela ligação na madrugada do 25 de Abril de
1974. Foi assim, sem glamour ou outra militância, que o escritor português
soube que alguma coisa acontecia no seu país, e que essa coisa poderia ser, por
fim, positiva. A amiga que o avisou aproveitou o telefonema para repetir a recomendação
que a rádio transmitia a todo o país: que havia um movimento em marcha, que as
pessoas deveriam ficar em casa e atentas às informações que seriam dadas.»
José
Saramago conversando com João
Céu e Silva, deixou cair:
«Eu já não comemoro o 25 de Abril.
Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que eu não posso ver
nenhum sinal, porque tudo o que o 25 de Abril me trouxe desapareceu e não me
digam que é porque temos democracia. Em primeiro lugar porque esta democracia –
e a democracia em geral – é bastante discutível e penso que haveria de a
discutir muito seriamente porque a democracia é uma espécie de santa no altar
em que não se pode tocar nem dizer nada. Espanha também tem democracia e não
fez nenhuma revolução, se nós em lugar da revolução tivéssemos passado por um
processo de transição como aconteceu no país vizinho estaríamos exactamente
onde estamos. Aqui há anos, numa sessão organizada pela CGTP, eu atrevi-me a
dizer isto e o que me chamaram nessa altura… Até o Melo Antunes disse «Esse
tipo é parvo!» Por isso não me falem em 25 de Abril, a malta sai à rua com os
panos a dizer «25 de Abril sempre» mas onde está ele? Digam-me por favor o que
é que ficou, mas digam-me concretamente. Nada… Ficou uma data e agora só nos
resta ir ao cemitério uma vez por ano pôr as flores onde entendermos que são
justas.»
Já a 25 de Abril de 1993, Cadernos
de Lanzarote, 1º volume, escrevera:
«Carmélia telefonou de manhã, aos gritos
«25 de Abril , sempre! 25 de Abril, sempre!» Lembrei-me daquela outra chamada,
há 19 anos, no meio da noite, quando uma das filhas do Augusto da Costa Dias me
avisou que a revolução está nas ruas, Agora, o entusiasmo de Carmélia, um
entusiasmo de sobrevivente, deixou-me lamentavelmente frio».
No 5º volume dos Cadernos de
Lanzarote, na entrada de 25 de Abril de 1997, José Saramago deixou
escrito:
«Exemplar e oportuno, Vasco Lourenço acaba de
produzir uma importantíssima declaração, contribuindo, como só ele poderia,
para as alegrais deste dia fasto: «Se fosse preciso, faria outro 25 de Abril…»
Dá vontade de lhe dizer que teria podido consegui-lo facilmente se não tivesse
ajudado tanto a fazer o 25 de Novembro…»
Legenda: fotografia de Eduardo Gageiro
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