De que matéria é que se fazem os sonhos? De letras, diria eu. Ora vamos e vejamos, os sonhos dos filmes, antes de serem sonhos, antes de serem aventuras, antes de serem gargalhadas, são palavras escritas. Há, para cada filme, um argumentista, a senhora ou senhor que escreve os textos, que hão de guiar o realizador e ser frases na boca aos actores. Há tempos, os argumentistas mais reputados em actividade elegeram o melhor de sempre na profissão.
Vejam, elegeram Billy
Wilder, um austríaco que pronunciava cada palavra inglesa com os pés, mas que
tinha ideias e sacava diálogos de uma afrontosa originalidade, para não dizer
virgindade. Escreveu coisas geniais e Ninotchka,filme realizado por Ernst Lubitsch, foi uma das
obras-primas que saiu da sua máquina de escrever.
Deram-lhe um mote: “Jovem russa impregnada de ideais
bolchevistas vai para a assustadora, capitalista e monopolista cidade
de Paris. Apaixona-se e passa uns dias de gozo do caneco. Talvez o capitalismo
não seja assim tão mau.” Deste briefing, Wilder inventou Ninotchka.
Pois bem, conhecemos a
revolucionária Ninotchka na sombria Moscovo e, claro, estamos todos à espera de
ver a cena da chegada, a uma gare de Paris, dessa Ninotchka, a que Greta Garbo
emprestou rosto, corpo e a rouca voz.
Na gare estão à espera
dela três camaradas soviéticos, já inclinados, pela vida que espreitam em
Paris, à condescendência social-democrata para a qual, durante os anos da nossa
geringonça, até mesmos os inflamados militantes bloquistas se deixaram
deslizar, direitinhos ao bolso de António Costa.
Digo isto e não é um
despropósito, há qualquer coisa de mortaguiano no primeiro contacto da camarada
Garbo com um representante da espécie chauvinista, arrogante, machista, que é o
aromático burguês de infeliz produção capitalista. Ela quer estudar a espécie,
como um entomologista a sua minhoca.
Como se fosse a
inescapável sessão de uma comissão parlamentar, Mortágua, perdão, a camarada
Greta Garbo disseca o bicho capitalista e expõe, com uma imbatível lógica
escolástica, as misérias que o lacinho de seda, o chapéu de feltro, o delicado
fatinho, procuram ocultar. É delicioso ver a comunistíssima Greta Garbo
desfazer a miséria do capitalismo.
Parêntesis:
verifiquei, com surpresa, tão justa e científica é a previsão do fim do
chauvinismo capitalista, que o filme foi, ao tempo, proibido na solaríssima
União Soviética, onde julgo que nada era proibido.
Palpita-me que a
culpa foi das palavras que Wilder pôs na boca de Ninotchka, depois dela
experimentar uns apaixonados french
kisses, arrancados aos lábios e língua do execrável burguês, beijos
acompanhados por umas flûtes desse
borbulhante champanhe, que faz a glória da França e é a única etílica libação
que a minha mulher, a revolucionária Antónia, consente.
E diz Ninochka, de
olhos postos no amado burguês e na taça de champanhe: “Estou tão feliz. Oh, que feliz que estou. Ninguém pode estar tão feliz
sem ser castigado. Vou ser castigada. Tenho de ser castigada.”
Wilder castiga-a! Se virem o filme, descobrem como: o sólido argumentista austríaco fá-la rir, e rir é o pecado que a velha revolução bolchevista nunca perdoou. Tenho de acrescentar que, hoje, o activismo militante, vetusto, furioso, albardado em culpas, ainda perdoa menos. A conversão de Ninotchka ao riso e ao prazer é o caminho das pedras da sua perdição em Paris e por Paris. As palavras de Wilder fazem com que a camarada Greta Garbo ponha cada pé na pedra certa, ou não fossem as palavras a matéria de que se fazem os sonhos.
Manuel S. Fonseca na sua Pàgina Negra
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