Ao Egito Gonçalves
Estamos nus e gramamos.
Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um
poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou.
As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões,
vaidades.
A estupidez, esta crassa crença
intratável, esta confiança
indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma
plenitude a isto.
Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências,
pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.
Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.
A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos,
mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as
palavras,
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios
discursos
fluem em visões, em ondas, como se não
no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.
Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.
Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
Os anjos exactos
que empunham tesouras
de encontro aos factos
- ó minhas senhoras!
Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque
Estamos nus e gramamos.
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