sexta-feira, 25 de maio de 2012

SUD-EXPRESS


Quem quer que tenha depositado nas viagens do Sud Expresso, ou naquilo que delas resta, a auspiciosa alternativa ao turismo de massas, capaz de proporcionar o kitsch da contemplação do passado, só poderá acolher as recentes notícias com muita consternação. Acusando prejuízos incomportáveis, a mítica linha parece condenada à morte sem recurso, e doa o que doer, a quem privilegiar ainda o remanso dos extensos percursos ferroviários. Não valerá sequer a pena verter sobre tal sentença a agridoce lágrima romântica, desacreditados como se acham gestos e sentimentos assim pelo pragmatismo do empacotamento global.
Somos da época em que a vetusta composição, circulando entre Lisboa e Hendaye, retinha um luxo verdadeiramente viscontiano. Os painéis de mogno da carruagem-restaurante, e as poltronas de veludo do wagon-lit, caturravam a uma luz de apliques que teria feito também as alegrias de Gabriele d'Annunzio. E mesmo nos anos imediatamente posteriores à Revolução dos Cravos, mediante a módica gorjeta, não se tornava impossível fruir do pequeno-almoço em tabuleiro, trazido à nossa cama para que o saboreássemos diante da paisagem das penhas bascas que precedem a chegada a Vitoria. O café com leite preparava-se com ingredientes autênticos, servidos em legítima porcelana, e a manteiga fresca convivia com compotas mais ou menos artesanais.
Ao longo das décadas, e em contínuas jornadas, fomos assistindo à degradação deste quadro, e à alteração da qualidade da existência que decorria sobre carris, emparceirando com o genérico abastardamento de um mundo sem particularismos. Sobrava porém um ramalhete dessa humanidade que tende à extinção, inquinada pelo igualitarismo dos comportamentos, e pela desalma dos objetivos. Mantinha-se a solteirona britânica, persistindo na leitura do seu romance de Stanley Weyman, o trabalhador sazonal que regressava à sua terra beirã, e que se enfrascava no bar com a festiva alegria dos copinhos de Macieira, e o aerofóbico que connosco partilhava o horror às máquinas voadoras.
O Sud Expresso desaparecerá sem rasto, não se duvide, deixando os curiosos da verificação dos cenários literários de mãos tristemente vazias. Dele apenas irão falar por algum tempo as páginas de Eça de Queirós, atestando toda uma história dos costumes, e toda uma atmosfera dos caracteres.
E oferecer-se-á às gerações vindouras este ensejo do desabafo com que se brinda hoje a ausência da água canalizada, ou do aquecimento central, "Que seca, Deus do Céu!, e que atraso de vida!"

Mário Cláudio,  Expresso, 24 de Setembro de 2010.

Leganda: não foi possível identificar origem do cartaz do Sud-Express

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