domingo, 11 de maio de 2014

AQUI, EM LISBOA CHATICE


  Na cave do Café Martinho onde agora nos reunimos
  todas as tardes – o Abelaira, o Carlos de Oliveira, o
  Manuel de Azevedo, o Vitorino Magalhães Godinho,
  Ontem, o Cardoso Pires. Aqui em Lisboa, chatice.

Que pena! não haver aqui senão barricadas de bocejos   
feitas com canecas de cerveja, amendoins, tremoços e teorias espreguiçadas,
sobretudo teorias com palavras lógicas de corações gelados, para salvar o mundo.
Salvarem-no do quê? - desde criança que peço às estrelas que
[ me perguntem
que crime cometi antes de me nascerem mãos.

Herdei-o como quem herda a morte, as árvores, o fogo
[ adormecido,
o pecado original,
a vida passada a papel químico.

Mas por favor não me salvem. Percam-me antes. Percam-me!
Prefiro andar aos tombos com a cabeça agredir os astros,
neste mundo que, como eu, não quer ser salvo,
mas despedaçado em pequeninas palavras enfim libertas,
soltas ao cimento fluido que as prende ao real do sonho.

Deixem-nas correr, correr livres e sem máscaras nas valetas
para se colarem a outras coisas e sonhos diferentes
de maneira que a Terra pareça mais nova
com cidades por enquanto construídas com saliva
de bocas de mulheres
- quentes do sangue das bandeiras
agitadas pelo bafo de amor do vento.

José Gomes Ferreira em Poesia VI, Diabril Editora, Lisboa, Fevereiro de 1976

Legenda: cave do Café Martinho. Fotografia tirada de José Gomes Ferreira, Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 2001

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