domingo, 6 de agosto de 2017

DO SORRISO DE FEHÉR


As televisões tornaram-se macabras.
Praticam um jornalismo miserável, de sarjeta.
Aqueles repórteres em directo são o pior que nos pode acontecer enquanto olhamos o pequeno écran.
E há milhares que não despregam os olhos e que exigem o «must» do escabroso.
Os «shares» exigem sangue e que esse sangue dure o maior tempo possível.
Ana Sousa Dias, hoje no Diário de Notícias, dá-nos a ler um brilhante texto de opinião sobre o jornalismo que se pratica hoje em dia:

«Um dos meus heróis chama-se Ricardo Espírito Santo. No dia 25 de janeiro de 2004, ele dirigia a transmissão do jogo Guimarães-Benfica e tirou do ar, num ápice, o rosto de Miklós Fehér no instante em que o coração do jogador húngaro parou. A última imagem que tivemos dele foi um sorriso aberto. Ricardo fez, antes e depois, centenas de transmissões de futebol, um trabalho normal na vida profissional dele, que está recheada de muitos outros, no desporto como noutras áreas. Eu não o conhecia mas para mim aquele momento definiu-o. Mais tarde ficámos amigos e pude confessar-lhe o meu profundo respeito por aquele gesto instantâneo. Para ele, tinha sido uma reação normal, óbvia.
Todos os dias tomamos decisões - o que vou vestir, viro para a esquerda ou para a direita, o que faço para o jantar -, escolhas banais. As grandes decisões são outra coisa: mesmo quando parecem tomadas rapidamente, têm por trás um lastro que é a nossa vida inteira, incluindo as nossas hesitações e indecisões. Ricardo não decidiu por acaso evitar que o mundo visse em direto a morte de Fehér. Ele é assim, deontologicamente irrepreensível.
O mesmo respeito mantenho pelo realizador de um programa de entrevistas que tive na RTP2, Rui Nunes. Se o entrevistado se comovia demasiado, se lhe tremia a voz ou os olhos ficavam em lágrimas, ele retirava-lhe de imediato o grande plano do rosto, numa atitude de profundo respeito. Bem sei que há quem goste de fazer exatamente o contrário e até há quem force essas situações de lágrimas. Até há aquela clássica cena das lágrimas falsas do jornalista interpretado por William Hurt em Edição Especial (Broadcast News, 1987, realizado por James L. Brooks), desmascaradas por Holly Hunter.
Na quarta-feira passada, também eu dei por mim pasmada em frente da televisão a ver imagens do areal de São João da Caparica. Passados estes dias, agradeço à RTP por ter sido o único canal de televisão que não ficou horas especado num lugar onde aconteceu uma tragédia mas onde, passado pouco tempo, já não havia nada para mostrar em direto. Havia reportagem para fazer, para depois editar, mas não era necessário ficar em direto. E muito menos a entrevistar, para ocupar o tempo, crianças que tinham acabado de testemunhar a morte de duas pessoas. Vi pelo menos duas crianças a quem foram pedidos pormenores do acidente.
Tive sorte, não vi o momento em que o pai de Sofia quis falar para o microfone da TVI24. Posso imaginar - e dizem-me que foi evidente - o embaraço e o pudor da repórter. Se estava decidido manter o direto, devia haver alguém na régie a dirigir a emissão com sangue-frio e preocupação ética, alguém que decidisse parar a cena de imediato. Não é apenas bom senso: há regras para isto, nós jornalistas temos um código deontológico que é claro a este respeito.
Nos antípodas do episódio Fehér tenho na memória um dos momentos em que senti maior vergonha alheia. Foi durante as longuíssimas horas em que, no dia 4 de março de 2001, houve os mais absurdos diretos de televisão: o acidente de Entre-os-Rios. Não acontecia absolutamente nada. De vez em quando, mergulhadores faziam buscas no leito lamacento e caudaloso de um Douro que escoava águas de muitas chuvas, mas cada vez se tornava mais óbvio que não iria aparecer nada. Soube-se mais tarde que morreram ali 59 pessoas, dentro de um autocarro e de três carros que atravessavam a Ponte Hintze Ribeiro quando um dos pilares ruiu. Nada mais havia para ver, porque a violência das águas tinha arrastado tudo em direção ao mar.
Tal como no areal da Caparica, também havia jornalistas a entrevistar pessoas que por ali andavam. Na maioria, eram familiares, amigos, vizinhos dos que tinham desaparecido. Sei, porque fiz perguntas depois, que os repórteres no local recebiam da chefia ordens constantes para mostrar "sangue", maneira de dizer que era preciso agarrar os espetadores com algum pormenor escabroso. E foi então que uma repórter anunciou: "Vamos falar com um menino que costumava ir às excursões com os avós mas desta vez foi substituído por um irmão." A pergunta nunca me sairá da cabeça: "Tiveste pena de não ir na excursão?"
Quando dou aulas, refiro sempre este exemplo como o cúmulo do que não deve ser feito. Está lá tudo: a entrevista a uma criança sobre uma tragédia, a insistência num direto sem sentido, a exploração descabelada do voyeurismo básico que todos temos um pouco em nós. E a estupidez da pergunta, claro.
Podermos ver em tempo real algo que está a acontecer é um feito extraordinário que a tecnologia nos dá. Mas um direto de informação não é uma câmara de vigilância à espera de que alguma coisa aconteça.»

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