As televisões tornaram-se macabras.
Praticam um jornalismo miserável, de
sarjeta.
Aqueles repórteres em directo são o pior que
nos pode acontecer enquanto olhamos o pequeno écran.
E há milhares que não despregam os olhos e
que exigem o «must» do escabroso.
Os «shares» exigem sangue e que esse sangue
dure o maior tempo possível.
Ana Sousa Dias, hoje no Diário de Notícias, dá-nos a ler um brilhante texto de opinião sobre o jornalismo que se pratica
hoje em dia:
«Um dos meus heróis chama-se Ricardo
Espírito Santo. No dia 25 de janeiro de 2004, ele dirigia a transmissão do jogo
Guimarães-Benfica e tirou do ar, num ápice, o rosto de Miklós Fehér no instante
em que o coração do jogador húngaro parou. A última imagem que tivemos dele foi
um sorriso aberto. Ricardo fez, antes e depois, centenas de transmissões de
futebol, um trabalho normal na vida profissional dele, que está recheada de
muitos outros, no desporto como noutras áreas. Eu não o conhecia mas para mim
aquele momento definiu-o. Mais tarde ficámos amigos e pude confessar-lhe o meu
profundo respeito por aquele gesto instantâneo. Para ele, tinha sido uma reação
normal, óbvia.
Todos os dias tomamos decisões - o que vou
vestir, viro para a esquerda ou para a direita, o que faço para o jantar -,
escolhas banais. As grandes decisões são outra coisa: mesmo quando parecem
tomadas rapidamente, têm por trás um lastro que é a nossa vida inteira,
incluindo as nossas hesitações e indecisões. Ricardo não decidiu por acaso
evitar que o mundo visse em direto a morte de Fehér. Ele é assim, deontologicamente
irrepreensível.
O mesmo respeito mantenho pelo realizador de
um programa de entrevistas que tive na RTP2, Rui Nunes. Se o entrevistado se
comovia demasiado, se lhe tremia a voz ou os olhos ficavam em lágrimas, ele
retirava-lhe de imediato o grande plano do rosto, numa atitude de profundo
respeito. Bem sei que há quem goste de fazer exatamente o contrário e até há
quem force essas situações de lágrimas. Até há aquela clássica cena das
lágrimas falsas do jornalista interpretado por William Hurt em Edição Especial
(Broadcast News, 1987, realizado por James L. Brooks), desmascaradas por Holly
Hunter.
Na quarta-feira passada, também eu dei por
mim pasmada em frente da televisão a ver imagens do areal de São João da
Caparica. Passados estes dias, agradeço à RTP por ter sido o único canal de
televisão que não ficou horas especado num lugar onde aconteceu uma tragédia
mas onde, passado pouco tempo, já não havia nada para mostrar em direto. Havia
reportagem para fazer, para depois editar, mas não era necessário ficar em
direto. E muito menos a entrevistar, para ocupar o tempo, crianças que tinham
acabado de testemunhar a morte de duas pessoas. Vi pelo menos duas crianças a
quem foram pedidos pormenores do acidente.
Tive sorte, não vi o momento em que o pai de
Sofia quis falar para o microfone da TVI24. Posso imaginar - e dizem-me que foi
evidente - o embaraço e o pudor da repórter. Se estava decidido manter o
direto, devia haver alguém na régie a dirigir a emissão com sangue-frio e
preocupação ética, alguém que decidisse parar a cena de imediato. Não é apenas
bom senso: há regras para isto, nós jornalistas temos um código deontológico
que é claro a este respeito.
Nos antípodas do episódio Fehér tenho na
memória um dos momentos em que senti maior vergonha alheia. Foi durante as
longuíssimas horas em que, no dia 4 de março de 2001, houve os mais absurdos
diretos de televisão: o acidente de Entre-os-Rios. Não acontecia absolutamente
nada. De vez em quando, mergulhadores faziam buscas no leito lamacento e
caudaloso de um Douro que escoava águas de muitas chuvas, mas cada vez se
tornava mais óbvio que não iria aparecer nada. Soube-se mais tarde que morreram
ali 59 pessoas, dentro de um autocarro e de três carros que atravessavam a
Ponte Hintze Ribeiro quando um dos pilares ruiu. Nada mais havia para ver,
porque a violência das águas tinha arrastado tudo em direção ao mar.
Tal como no areal da Caparica, também havia
jornalistas a entrevistar pessoas que por ali andavam. Na maioria, eram
familiares, amigos, vizinhos dos que tinham desaparecido. Sei, porque fiz
perguntas depois, que os repórteres no local recebiam da chefia ordens
constantes para mostrar "sangue", maneira de dizer que era preciso
agarrar os espetadores com algum pormenor escabroso. E foi então que uma
repórter anunciou: "Vamos falar com um menino que costumava ir às
excursões com os avós mas desta vez foi substituído por um irmão." A
pergunta nunca me sairá da cabeça: "Tiveste pena de não ir na
excursão?"
Quando dou aulas, refiro sempre este exemplo
como o cúmulo do que não deve ser feito. Está lá tudo: a entrevista a uma
criança sobre uma tragédia, a insistência num direto sem sentido, a exploração
descabelada do voyeurismo básico que todos temos um pouco em nós. E a estupidez
da pergunta, claro.
Podermos ver em tempo real algo que está a
acontecer é um feito extraordinário que a tecnologia nos dá. Mas um direto de
informação não é uma câmara de vigilância à espera de que alguma coisa
aconteça.»
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