A obsessão do dever, o escrúpulo de cumprir o combinado, a tendência
para estar sempre a horas (pontualidade = minutos antes de) sempre foi muito
forte em mim. Possível conclusão: a educação conta mais do que se julga e a
actividade clandestina, que é também uma escola, conta ainda mais. E quem
pensar que o digo para gabar-me, não esqueça, para não errar, que tal tipo de
comportamento nunca foi coisa de que artistas costumem orgulhar-se, nem muito
propícia, na verdade, à criação. Para certos temperamentos, como o meu: a arte nada
tem com qualquer espécie de negócio e tudo com o ócio. De que nasce.
Vêm-me à cabeça casos em que espontaneamente esta
necessidade de cumprir foi posta à prova. Em 1963, tendo aceitado colaborar num
número de O Tempo e o Modo, dedicado por sinal ao tema de se «A arte deverá ter
por fim a verdade prática», cai-me em cima da cabeça a necessidade de fazer
uma operação de urgência. «O Carneiro de Moura tira-lhe isso num instante!» –
mandou-me dizer o prof. Pulido Valente, que, com a amizade que sempre lhe devi,
diagnosticara rapidamente o mal, já no leito de que não mais se levantou.
«Isso» era um simpático quisto sebáceo, do tamanho duma laranja, o sacripanta,
bem agarrado à parede exterior do rim, que outros me queriam arrancar, não o
quisto mas o rim... Em exames prévios e inúteis já me tinham provocado uma
excelentíssima infecção que ia acabando ali comigo. Dei, pois, entrada no
Hospital de Santa Maria em estado lastimável, sem tempo nem cabeça para escrever
fosse o que fosse, adeus depoimento. Mas, na véspera da operação, à noite,
quando a minha mulher, inquieta, se despedia, até ao dia seguinte (horas boas!,
inútil é contá-las a quem as não conhece de vivê-las!), digo-lhe eu, a fazer
de homem que não treme: «Amanhã de manhã, quando estiver na sala de operações,
vem ver na gaveta aqui na banca. Se este bloco tiver alguma coisa escrita,
passa-a à máquina, por favor, e fá-la chegar ao Bénard da Costa. Vou tentar». E
assim foi. Quando a enfermeira abriu a porta com os comprimidos da praxe, eu estava
dentro da rotina por experiência, pedi-lhe que voltasse dentro de meia hora,
poderia ser? Ela que sim, amável, parecia adivinhar, e eu, mal sentado na cama,
lá consegui rabiscar em cima dos joelhos, que não sobre o joelho, um pequeno
texto que era quase o prometido6. Guardei o bloco na gaveta, esperei o
regresso da simpática enfermeira, engoli os comprimidos e, todo entregue já ao
meu destino, apaguei a luz satisfeito comigo. Tinha feito o possível.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: retrato de
Mário Dionísio por João Abel Manta retirado do site do Centro Mário
Dionísio/Casa da Achada
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