quinta-feira, 5 de abril de 2018

A NECESSIDADE DE CUMPRIR


A obsessão do dever, o escrúpulo de cumprir o combinado, a tendência para estar sempre a horas (pontualidade = minutos antes de) sempre foi muito forte em mim. Possível conclusão: a educação con­ta mais do que se julga e a actividade clandestina, que é também uma escola, conta ainda mais. E quem pensar que o digo para gabar-me, não es­queça, para não errar, que tal tipo de comporta­mento nunca foi coisa de que artistas costumem orgulhar-se, nem muito propícia, na verdade, à criação. Para certos temperamentos, como o meu: a arte nada tem com qualquer espécie de negócio e tudo com o ócio. De que nasce.
 Vêm-me à cabeça casos em que espontaneamen­te esta necessidade de cumprir foi posta à prova. Em 1963, tendo aceitado colaborar num número de O Tempo e o Modo, dedicado por sinal ao tema de se «A arte deverá ter por fim a verdade práti­ca», cai-me em cima da cabeça a necessidade de fa­zer uma operação de urgência. «O Carneiro de Moura tira-lhe isso num instante!» – mandou-me dizer o prof. Pulido Valente, que, com a amizade que sempre lhe devi, diagnosticara rapidamente o mal, já no leito de que não mais se levantou. «Isso» era um simpático quisto sebáceo, do tama­nho duma laranja, o sacripanta, bem agarrado à parede exterior do rim, que outros me queriam ar­rancar, não o quisto mas o rim... Em exames pré­vios e inúteis já me tinham provocado uma exce­lentíssima infecção que ia acabando ali comigo. Dei, pois, entrada no Hospital de Santa Maria em estado lastimável, sem tempo nem cabeça para es­crever fosse o que fosse, adeus depoimento. Mas, na véspera da operação, à noite, quando a minha mulher, inquieta, se despedia, até ao dia seguinte (horas boas!, inútil é contá-las a quem as não co­nhece de vivê-las!), digo-lhe eu, a fazer de homem que não treme: «Amanhã de manhã, quando esti­ver na sala de operações, vem ver na gaveta aqui na banca. Se este bloco tiver alguma coisa escrita, passa-a à máquina, por favor, e fá-la chegar ao Bénard da Costa. Vou tentar». E assim foi. Quando a enfermeira abriu a porta com os comprimidos da praxe, eu estava dentro da rotina por experiência, pedi-lhe que voltasse dentro de meia hora, poderia ser? Ela que sim, amável, parecia adivinhar, e eu, mal sentado na cama, lá consegui rabiscar em cima dos joelhos, que não sobre o joelho, um pequeno texto que era quase o prometido6. Guardei o bloco na gaveta, esperei o regresso da simpática enfer­meira, engoli os comprimidos e, todo entregue já ao meu destino, apaguei a luz satisfeito comigo. Tinha feito o possível.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: retrato de Mário Dionísio por João Abel Manta retirado do site do Centro Mário Dionísio/Casa da Achada

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