segunda-feira, 30 de abril de 2018

NÓS AMÁVAMOS MUITO E SABÍAMOS POUCO


A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos apare­lhos de TSF, por causa das interferências meticulo­samente provocadas, por causa dos vizinhos (fos­sem eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o re­morso de ficar. As notícias diárias dos bombardea­mentos, dos fuzilamentos, das aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarón!». O não passarão vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid, sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde. Houve um tempo em que nem saber onde estavam se podia.
 Tudo isso foi raiz (e corpo) do neo-realismo. Do neo-realismo de que participei desde a hora antes do amanhecer, com o Joaquim Namorado, o Re­dol, o Namora, o Fonseca, o Carlos de Oliveira, muitos mais. Do neo-realismo que rapidamente se propagou e diferenciou. Que era e continua a ser motivo de confusões intencionais, involuntárias, talvez inevitáveis. Apesar de tudo o que, também eu, sobre ele escrevi e repeti. Dos estudos que al­guns lhe têm dedicado.
 Nós amávamos muito e sabíamos pouco. «A re­forma social» (e estética) «esbarrava na própria so­ciedade néscia que havia sido o caldo de cultura dos neo-realistas e também o [de mim] próprio», como bem diz um estudioso do movimento, ele próprio neo-realista, embora não da primeira va­ga. Líamos Barbusse, Gorki e Gladkov, os brasi­leiros, misturando Romain Rolland, Oscar Wilde, Tolstoi e Erich Maria Remarque, Panait Istrati e Malraux. Vagamente conhecíamos o Orpheu, pou­co melhor a própria Presença que tão juvenilmente combatíamos. Moralmente, estavam-nos vedadas grandes paixões futuras: o Proust, o Gide, Katherine Mansfield, tantos e tantos mais. Muitas vezes me espanta como, com tão pouca bagagem, podía­mos viajar até tão longe.
 A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco a que o nosso gueto forçosa­mente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário, foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se torna­ram surrealistas e se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renova­ção estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criati­vos que só o surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n' O Riso Dissonante, por exemplo, ou no Feu qui dort: «une pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.
 Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em que: primeiro, nunca concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspira­ção de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer «realismo socialista»; terceiro, para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma vi­são marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele movimento — nunca «escola» — teria de desdobrar-se em diver­sas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis — o que efectivamente aconteceu. O seu domínio seria o do «extremamente complexo conhecimento dia­léctico do homem» (Lenine). Complexo e dialécti­co, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de in­tegrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia.

Mário Dionísio em Autobiografia

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