A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida
dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos aparelhos de TSF, por causa
das interferências meticulosamente provocadas, por causa dos vizinhos (fossem
eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a
pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o remorso
de ficar. As notícias diárias dos bombardeamentos, dos fuzilamentos, das
aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarón!». O não passarão
vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid,
sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos
perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde. Houve um tempo em que nem saber
onde estavam se podia.
Tudo isso foi raiz (e corpo) do neo-realismo. Do neo-realismo de
que participei desde a hora antes do amanhecer, com o Joaquim Namorado, o Redol,
o Namora, o Fonseca, o Carlos de Oliveira, muitos mais. Do neo-realismo que
rapidamente se propagou e diferenciou. Que era e continua a ser motivo de
confusões intencionais, involuntárias, talvez inevitáveis. Apesar de tudo o
que, também eu, sobre ele escrevi e repeti. Dos estudos que alguns lhe têm
dedicado.
Nós amávamos muito e sabíamos pouco. «A reforma
social» (e estética) «esbarrava na própria sociedade néscia que havia sido o
caldo de cultura dos neo-realistas e também o [de mim] próprio», como bem diz
um estudioso do movimento, ele próprio neo-realista, embora não da primeira vaga. Líamos Barbusse, Gorki e
Gladkov, os brasileiros, misturando Romain Rolland, Oscar Wilde, Tolstoi e
Erich Maria Remarque, Panait Istrati e Malraux. Vagamente conhecíamos o Orpheu, pouco melhor a própria Presença que tão juvenilmente
combatíamos. Moralmente, estavam-nos vedadas grandes paixões futuras: o Proust,
o Gide, Katherine Mansfield, tantos e tantos mais. Muitas vezes me espanta
como, com tão pouca bagagem, podíamos viajar até tão longe.
A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco
a que o nosso gueto forçosamente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em
França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos
surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram
então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário,
foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se tornaram surrealistas e
se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renovação
estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a
poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criativos que só o
surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n' O Riso Dissonante, por exemplo,
ou no Feu qui dort: «une
pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.
Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em
que: primeiro, nunca
concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspiração
de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não
era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer
«realismo socialista»; terceiro,
para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma visão
marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele
movimento — nunca «escola» — teria de desdobrar-se em diversas maneiras,
gostos, soluções imprevisíveis — o que efectivamente aconteceu. O seu domínio
seria o do «extremamente complexo conhecimento dialéctico do homem» (Lenine).
Complexo e dialéctico, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em
ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de
integrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí
estava a utopia.
Mário Dionísio em Autobiografia
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