Quarenta e sete
anos, dez meses e vinte e quatro dias durou a barbárie salazarenta/marcelista, o
tempo do desprezo, como lhe chamou Mário Dionísio.
Éramos um país
que vivia debaixo de um atraso sem medida, tempos terríveis que só quem neles
viveu tem a justa medida – quem passa por elas é que sabe!
O avô senta o
neto nos joelhos e conta: foi assim.
Acreditávamos.
Tão só.
Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das
ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exacto perfume das flores.
A festa foi
bonita, pá.
Manuel António
Pina:
Durou, o sonho, só uma semana, mas esse é um
património que ninguém nos tirará. Na tarde do 1º de maio, já nos
confrontávamos uns com os outros.
De então para cá, tem sido o que se sabe. Carlyle
escreveu que as revoluções são sonhadas por idealistas, realizadas por
radicais, e que quem delas se aproveita são os oportunistas de todas as
espécies.
Quarenta e quatro
anos sobre a madrugada que esperávamos, lembrando Sophia, quando emergimos da
noite e do silêncio.
Também escreveu José
Saramago:
Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria
igualzinho aos outros se não fossemos nós a «fazê-lo» diferente.
Ao longo destes
anos, tenho vindo a ouvir os que, a partir de um certo tempo, sempre anunciarem
que o 25 de Abril se tornaria num 5 de Outubro.
Nunca acreditei
e ainda não vi a possibilidade de isso vir a acontecer.
Gente que pensa
que a memória do 25 de Abril é algo difuso, que com o tempo se tornará
insignificante, gente que advoga o silêncio como um argumento.
Serenamente vos
digo:
Não há nenhum 25
de Abril em que não me venha à memória, o 1º poema de Canto e
Lamentação na Cidade Ocupada, incluído em A Invenção do Amor e Outros
Poemas, de Daniel Filipe lido, relido vezes sem conta, nos tais tempos
difíceis:
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone
Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone
Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
Legenda: fotografia de Eduardo Gageiro
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