CRAVOS E VERDI
Nos últimos anos da ditadura, o Teatro São
Carlos estabeleceu uma parceria com o Coliseu dos Recreios de
modo a que as óperas que eram representadas no São Carlos também pudessem
ser vistas na velha sala das Portas de Santo Antão.
Era a possibilidade de um vasto leque da população, sem
dinheiro, nem fraque, nem jóias para frequentar São Carlos, pudessem
usufruir desses espectáculos, como que dando seguimento à célebre frase de
António Silva de que a ópera é música para operários.
Quando, nessa noite, 24 de Abril de 1974, perto de
cinco mil pessoas aplaudiram freneticamente os artistas, com Alfredo Kraus e
Joan Sutherland à frente do elenco, que representaram La Traviatta de
Verdi, já as senhas do Movimento das Forças Armadas tinham sido
transmitidas pela rádio.
A reportagem do Diário de Notícias dava
conta que, no meio das ovações intermináveis, cravos foram lançados das frisas.
Regressando a suas casas, desconheciam que esse começo
de 25 de Abril não era mais um dia do calendário, um dia como outro
qualquer.
Um regime decrépito, que nos massacrava os ouvidos com
afirmações de coragem e heroicidade, que se as forças do mal atentassem contra
a ordem estabelecida, vinham para as ruas dar o peito às balas.
Em escassas horas, o senil regime esfrangalhou-se.
Não soltaram um pio.
Como disse o Hélder: foi um ar que lhes deu.
Em escassas horas, o senil regime esfrangalhou-se.
Não soltaram um pio.
Como disse o Hélder: foi um ar que lhes deu.
A partir desse dia, protagonistas de uma grande
esperança, nem nos pesadelos mais negros, admitimos que viríamos a ser
invadidos por um desencanto sem nome.
Aconteceu!
Encharca-nos os dias.
Encharca-nos os dias.
Mas é bom não esquecer que há coisas que não têm fim: a
esperança num mundo melhor, por exemplo, e a luta por consegui-lo.
FALTÁMOS POR MOTIVO IMPREVISTO
Vezes sem conta, tentei arranjar bilhetes para ir ver as
récitas das óperas que do São Carlos desciam até ao Coliseu, mas nunca
consegui.
Sabia que os bilhetes eram distribuídos por aqui e por
ali e os poucos que restavam eram postos à venda mas desapareciam num ápice.
Pela leitura da Alvorada de Abril do
Otelo Saraiva de Carvalho fiquei a saber que Secção de Actividades Culturais e
Recreativas da Academia Militar era uma das entidades a quem eram distribuídos
bilhetes.
Aliás, por mera curiosidade, vale a pena recordar, em
vésperas do 25 de Abril, as mirabolâncias operáticas do Otelo.
Otelo diz à mulher que chegou a hora, e se ela, no rádio, ouvir os sinais, é porque tudo está acorrer bem.
A mulher pergunta-lhe o que acontecerá se não ouvir os sinais.
Otelo responde-lhe:
Então, não sei ainda o que me poderá acontecer. Presumo que serei demitido, entregue à PIDE, passado a civil e vá aboborar por uns anos largos em Caxias ou, quem sabe, faça uma viagem só com bilhete de ida para o Tarrafal. Uma coisa te garanto: nunca mais farei guerra nenhuma no Ultramar.
E adianta:
O gracejo final fora chocho. Tinha a sensação de que o panorama se apresentava negro. Tentei dar-lhe uma pincelada de cor:
- Mas não te apoquentes com nada disso nem tenhas pensamentos desse género. Porque eu tenho a certeza de que, em poucas horas, ganharemos esta guerra. Dominamos quase todas as unidades do País, a malta está com uma gana formidável, temos a nosso favor o efeito surpresa. É canja!
Ela quis também dar ao ambiente um pequeno toque de humor:
- Queres então dizer com isso que amanhã não vamos à ópera?
Tinha-me esquecido completamente do assunto. Comprara bilhetes para a Traviata, que se cantava na noite de 24 no Coliseu dos Recreios, aproveitando o preço mais baixo que nos era facultado através da Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar.
- Olha, guarda-os para recordação. É claro que não vamos.
Com o permanente espírito de economia caseira retorquiu:
- Leva-os antes contigo e procura entregá-los amanhã na Academia. Pode ser que devolvam o dinheiro.
- Não vou fazer isso. Entregá-los agora depois de tanto os ter pedido, dizendo que já não me interessa, pode levantar qualquer suspeita. Paciência. Outra vez virá. Além disso, já vimos a Traviata do alto do galinheiro do São Carlos.
Ainda hoje tenho comigo esses bilhetes. No sobrescrito timbrado da Academia Militar dentro do qual mos entregaram, minha mulher inscreveria mais tarde a frase: "Faltámos por motivo imprevisto".
Otelo diz à mulher que chegou a hora, e se ela, no rádio, ouvir os sinais, é porque tudo está acorrer bem.
A mulher pergunta-lhe o que acontecerá se não ouvir os sinais.
Otelo responde-lhe:
Então, não sei ainda o que me poderá acontecer. Presumo que serei demitido, entregue à PIDE, passado a civil e vá aboborar por uns anos largos em Caxias ou, quem sabe, faça uma viagem só com bilhete de ida para o Tarrafal. Uma coisa te garanto: nunca mais farei guerra nenhuma no Ultramar.
E adianta:
O gracejo final fora chocho. Tinha a sensação de que o panorama se apresentava negro. Tentei dar-lhe uma pincelada de cor:
- Mas não te apoquentes com nada disso nem tenhas pensamentos desse género. Porque eu tenho a certeza de que, em poucas horas, ganharemos esta guerra. Dominamos quase todas as unidades do País, a malta está com uma gana formidável, temos a nosso favor o efeito surpresa. É canja!
Ela quis também dar ao ambiente um pequeno toque de humor:
- Queres então dizer com isso que amanhã não vamos à ópera?
Tinha-me esquecido completamente do assunto. Comprara bilhetes para a Traviata, que se cantava na noite de 24 no Coliseu dos Recreios, aproveitando o preço mais baixo que nos era facultado através da Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar.
- Olha, guarda-os para recordação. É claro que não vamos.
Com o permanente espírito de economia caseira retorquiu:
- Leva-os antes contigo e procura entregá-los amanhã na Academia. Pode ser que devolvam o dinheiro.
- Não vou fazer isso. Entregá-los agora depois de tanto os ter pedido, dizendo que já não me interessa, pode levantar qualquer suspeita. Paciência. Outra vez virá. Além disso, já vimos a Traviata do alto do galinheiro do São Carlos.
Ainda hoje tenho comigo esses bilhetes. No sobrescrito timbrado da Academia Militar dentro do qual mos entregaram, minha mulher inscreveria mais tarde a frase: "Faltámos por motivo imprevisto".
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