domingo, 22 de abril de 2018

ENCONTREI GENTE QUE SÓ CONHECIA DOS ROMANCES DE GORKI


Na Faculdade, pois, a política ilegal e meio-legal: eleições para delegados ao Senado Universi­tário (pela última vez), assembleias para a criação de uma Associação de Estudantes, que não havia e continuou a não haver, protestos contra a expulsão do Prof. Rodrigues Lapa. Ali conheci, enfim, aque­la que seria a minha companheira para sempre, nos bons e nos maus momentos. E nos péssimos também. Como o da grave doença revelada dezoito dias depois do nosso casamento (sangue no chão de tanta felicidade) e que durou três longuíssimos anos. Ela mantinha a casa, ela me inventava a es­perança. Misteriosamente. Alegremente, se assim se pode dizer. Coração mais cabeça e muita dedica­ção, eis de onde vêm os milagres.
 Mas voltando ainda à Faculdade. Não sabia on­de começava e onde acabava o amor, a luta pela li­berdade e pela transformação do mundo, a criação poética. Engolia o Altolaguirre, o Emilio Prados, o Lorca muito menos (nunca soube explicar isto, te­nha embora um poema que parece inspiradíssimo num dele mas não é: desconhecia ainda o belíssimo «eran las cinco en punto de la tarde»), o Rafael Alberti, mais que todos talvez. Sonhava declamar, como ele, um grande poema na frente de combate. A minha convicção era que versos de tal modo declamados (mas tinham de ser bons, era o que já pensava) fariam recuar os tanques do inimigo, quebrar grades de cadeias, erguer bandeiras com multidões de esfarrapados atrás delas. Armazenar os explosivos. Pegar fogo ao rastilho. Vieram-me dizer: «Foste falado nos interrogatórios desta noite. Põe-te a andar».
 Desapareci de Lisboa até serem libertados os in­terrogados dessa noite, meti-me no Alentejo, en­contrei gente que só conhecia dos romances de Gorki. Tratavam-me como um irmão, davam-me a chave da própria casa, «para se precisares, de noite». E não eram operários nem rurais. Um tra­balhava numa farmácia, outro nos Caminhos de Ferro, outro num escritório. Chamava-se este Mar­quês. Por meu intermédio entrou na actividade clandestina e, quem o suporia então?, seria morto anos mais tarde nas torturas da PIDE.
 Quantas horas tinha cada dia? Quantos éramos ao todo? Impossível sabê-lo. Sabíamos, sim, que a situação portuguesa não se podia suportar (e trinta e muitos anos mais a suportámos), que ela se in­tegrava, numa situação internacional a nossos olhos de leitura fácil, que obrigava a tomar e a fa­zer tomar partido. E que a única esperança brilha­va, muito longe, nesta frase do autor de Tomás Gordeiev. «Nasce um novo sol no coração do Ho­mem». Frase que forçosamente se confundia, para muitos de nós, com um país imenso, onde houvera a maior Revolução do nosso tempo, raivosamente defendido de múltiplas e simultâneas tentativas de invasão, heroicamente resistindo à fome, à neve, à falta de quadros superiores: «Proletários de todos os países, uni-vos!» País sobre o qual muito líamos e falávamos, sobre o qual afinal pouco sabíamos e era, seria o centro de tudo durante muitos anos.
 Ou se mudava o Homem, ou não se mudava nada. Era o que pensava então, é o que penso ho­je. Os versos do meu livro Poemas (36 a 38) disto falavam, os de Terceira Idade (82), também. E o mais que escrevi. Escrever é outra coisa («uma coi­sa é ver, outra pintar», Picasso), mas relaciona-se com tudo.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Máximo Gorki

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