Na Faculdade, pois, a política ilegal e meio-legal: eleições para
delegados ao Senado Universitário (pela última vez), assembleias para a
criação de uma Associação de Estudantes, que não havia e continuou a não haver,
protestos contra a expulsão do Prof. Rodrigues Lapa. Ali conheci, enfim, aquela
que seria a minha companheira para sempre, nos bons e nos maus momentos. E nos
péssimos também. Como o da grave doença revelada dezoito dias depois do nosso
casamento (sangue no chão de tanta felicidade) e que durou três longuíssimos
anos. Ela mantinha a casa, ela me inventava a esperança. Misteriosamente.
Alegremente, se assim se pode dizer. Coração mais cabeça e muita dedicação,
eis de onde vêm os milagres.
Mas voltando ainda à Faculdade. Não sabia onde começava e onde
acabava o amor, a luta pela liberdade e pela transformação do mundo, a criação
poética. Engolia o Altolaguirre, o Emilio Prados, o Lorca muito menos (nunca
soube explicar isto, tenha embora um poema que parece inspiradíssimo num dele
mas não é: desconhecia ainda o belíssimo «eran las cinco en punto de la
tarde»), o Rafael Alberti, mais que todos talvez. Sonhava declamar, como ele,
um grande poema na frente de combate. A minha convicção era que versos de tal
modo declamados (mas tinham de ser bons, era o que já pensava) fariam recuar os
tanques do inimigo, quebrar grades de cadeias, erguer bandeiras com multidões
de esfarrapados atrás delas. Armazenar os explosivos. Pegar fogo ao rastilho.
Vieram-me dizer: «Foste falado nos interrogatórios desta noite. Põe-te a
andar».
Desapareci de Lisboa até serem libertados os interrogados dessa
noite, meti-me no Alentejo, encontrei gente que só conhecia dos romances de
Gorki. Tratavam-me como um irmão, davam-me a chave da própria casa, «para se
precisares, de noite». E não eram operários nem rurais. Um trabalhava numa
farmácia, outro nos Caminhos de Ferro, outro num escritório. Chamava-se este
Marquês. Por meu intermédio entrou na actividade clandestina e, quem o suporia
então?, seria morto anos mais tarde nas torturas da PIDE.
Quantas horas tinha cada dia? Quantos éramos ao todo? Impossível
sabê-lo. Sabíamos, sim, que a situação portuguesa não se podia suportar (e
trinta e muitos anos mais a suportámos), que ela se integrava, numa situação
internacional a nossos olhos de leitura fácil, que obrigava a tomar e a fazer
tomar partido. E que a única esperança brilhava, muito longe, nesta frase do
autor de Tomás Gordeiev. «Nasce um novo sol no coração do Homem». Frase que
forçosamente se confundia, para muitos de nós, com um país imenso, onde houvera
a maior Revolução do nosso tempo, raivosamente defendido de múltiplas e
simultâneas tentativas de invasão, heroicamente resistindo à fome, à neve, à
falta de quadros superiores: «Proletários de todos os países, uni-vos!» País
sobre o qual muito líamos e falávamos, sobre o qual afinal pouco sabíamos e
era, seria o centro de tudo durante muitos anos.
Ou se mudava o Homem, ou não se mudava nada. Era o que pensava
então, é o que penso hoje. Os versos do meu livro Poemas (36 a 38) disto
falavam, os de Terceira Idade (82), também. E o mais que escrevi. Escrever é
outra coisa («uma coisa é ver, outra pintar», Picasso), mas relaciona-se com
tudo.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Máximo Gorki
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