Ricardo Reis despiu a gabardina, pousou o chapéu, arrumou
cuidadosamente o guarda-chuva no lavatório, se ainda pingasse lá estaria o
oleado do chão, mesmo assim certificou-se primeiro, apalpou a seda húmida, já
não escorre, durante todo o caminho de regresso não chovera. Puxou uma cadeira
e sentou-se defronte do visitante, reparou que Fernando Pessoa estava em corpo
bem feito, que é a maneira portuguesa de dizer que o dito corpo não veste
sobretudo nem gabardina nem qualquer outra protecção contra o mau tempo, nem
sequer um chapéu para a cabeça, este tem só o fato preto, jaquetão, colete e
calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a meia, como se
apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar os outros.
Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem
reencontrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala,
Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e
Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá
saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade,
explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando
Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove
meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por
uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos
os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os
dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto
basta para o total olvido, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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