Mas Letras não fora só aquele estendal de miséria docente (com
excepções, sempre há excepções), aquele formigar de jovens, quase todos de
nível económico pouco mais que precário (por isso a maioria deles para lá ia),
a tentar, ano a ano e cadeira a cadeira, alcançar o canudo que os encaixasse
na vida. Letras foi também o local privilegiado da minha própria descoberta: o
franganote, quase galo, escapa-se da capoeira. Ali me pus a escrever a sério,
incluindo a ingenuidade dos começos, que me valeu uma trepa certeira do Álvaro
Marinha de Campos, que nunca mais esqueci, tão justa era. Ali conheci de perto pessoas de
nível excepcional, outras não tanto, outras, as pobres, nem falar nisso é bom.
Entre as primeiras, penso logo no Alberto Emílio de Araújo, figura ímpar que
este pobre país ignora, no Fernando Piteira Santos, no Álvaro Salema, no
Magalhães Vilhena, no Vitorino Magalhães Godinho... E, entre os segundos, por
exemplo, num literato que dispunha de corte privativa (era tão coxo que tinha
sempre gente frente ao banco de que dificilmente se levantava) e que
co--dirigia a revista Momento, uma
espécie de réplica da presença, bem
fraquinha por sinal (figura tutelar: António Botto), com a chancela da qual
foi editado o primeiro dos tais livros que resolvi esquecer. Ali intensifiquei
a minha actividade política (clandestina, pois claro), bem empenhadamente,
alguns o lembrarão. E isto me lavou por dentro de ter pertencido fugazmente,
com os meus dezasseis anos (no bom pano cai a nódoa, quando mais no surrobeco)
a um grupinho chamado «Núcleo de Propaganda Educativa/Novos de Portugal» — onde
teria eu o nariz?, até o nome cheirava —, uma pífia funçanata que, embora
inócua, iria, se lhe dessem algum vento, no sentido oposto àquele que era o
meu.
Era o tempo do Bloco Académico Antifascista, do jornal ilegal Barricada, do Socorro Vermelho Internacional, saberão
o que isso foi. Na casa onde então vivia, sem família, se guardou e organizou
algum tempo o material para o órgão do «Socorro». Na mesma casa noutra altura:
pulo da máquina onde bato um artigo sobre o Maiakovsky, para a Seara. Os ardinas estão a berrar na
rua, por baixo das minhas janelas: «Rebentou a guerra! Rebentou a guerra!»
Outra guerra. Mais selvagem que todas as passadas.
Mário Dionísio em Autobiografia
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