domingo, 15 de abril de 2018

O FRANGANOTE ESCAPA-SE DA CAPOEIRA


Mas Letras não fora só aquele estendal de misé­ria docente (com excepções, sempre há excepções), aquele formigar de jovens, quase todos de nível económico pouco mais que precário (por isso a maioria deles para lá ia), a tentar, ano a ano e ca­deira a cadeira, alcançar o canudo que os encaixas­se na vida. Letras foi também o local privilegiado da minha própria descoberta: o franganote, quase galo, escapa-se da capoeira. Ali me pus a escrever a sério, incluindo a ingenuidade dos começos, que me valeu uma trepa certeira do Álvaro Marinha de Campos, que nunca mais esqueci, tão justa era. Ali conheci de perto pessoas de nível excepcional, outras não tanto, outras, as pobres, nem falar nisso é bom. Entre as primeiras, penso logo no Alberto Emílio de Araújo, figura ímpar que este pobre país ignora, no Fernando Piteira Santos, no Álvaro Sa­lema, no Magalhães Vilhena, no Vitorino Maga­lhães Godinho... E, entre os segundos, por exem­plo, num literato que dispunha de corte privativa (era tão coxo que tinha sempre gente frente ao banco de que dificilmente se levantava) e que co--dirigia a revista Momento, uma espécie de réplica da presença, bem fraquinha por sinal (figura tute­lar: António Botto), com a chancela da qual foi editado o primeiro dos tais livros que resolvi es­quecer. Ali intensifiquei a minha actividade políti­ca (clandestina, pois claro), bem empenhadamente, alguns o lembrarão. E isto me lavou por dentro de ter pertencido fugazmente, com os meus dezasseis anos (no bom pano cai a nódoa, quando mais no surrobeco) a um grupinho chamado «Núcleo de Propaganda Educativa/Novos de Portugal» — onde teria eu o nariz?, até o nome cheirava —, uma pífia funçanata que, embora inócua, iria, se lhe dessem algum vento, no sentido oposto àquele que era o meu.
 Era o tempo do Bloco Académico Antifascista, do jornal ilegal Barricada, do Socorro Vermelho Internacional, saberão o que isso foi. Na casa onde então vivia, sem família, se guardou e organizou algum tempo o material para o órgão do «Socor­ro». Na mesma casa noutra altura: pulo da máquina onde bato um artigo sobre o Maiakovsky, para a Seara. Os ardinas estão a berrar na rua, por bai­xo das minhas janelas: «Rebentou a guerra! Re­bentou a guerra!» Outra guerra. Mais selvagem que todas as passadas.

Mário Dionísio em Autobiografia

Sem comentários: