sexta-feira, 18 de outubro de 2019

OLHAR AS CAPAS



Obras Completas
2º Volume
António Marinheiro, Os Anjos e o Sangue, O Duelo, O Pecado de João Agonia, Anunciação

Bernardo Santareno
Organização, Posfácio e Notas: Luís Francisco Rebello
Capa: Delgado Godinho
Editorial Caminho. Lisboa, Dezembro de 1984

ANTÓNIO (surpreendido, ferido): Doutra maneira, não nos deixam ficar juntos…
AMÁLIA: Sim, toda a gente diria que…
ANTÓNIO; Não te agrado?...
AMÁLIA: (reacção viva): Sim, tanto! Mas…
ANTÓNIO: Se me deixas, mato-me!
AMÁLIA (grito fundo de horror): Não!
ANTÓNIO: Mato-me, mato-me!
AMÁLIA: Ouve, António, escuta: eu nunca pensei em ti assim como… como homem, entendes?!
ANTÓNIO (grave): Eu sou um homem.
AMÁLIA (recuando, as mãos de novo sobre o ventre): És… Tu és um homem… (Pára de repente: grito deluz, síntese súbita de todos os seus sentimentos confusos.) Não, não! Tu és um rapazinho, tão novinho ainda… (mais uma vez se aproxima de António, acariciando-o.)
ANTÓNIO (que está sentado numa cadeira, poisando a face na mão de Amália infantil) Que voz a atua, Amália! Tão boa, tão meiga!... Quando me falas comigo, assim… é como se eu estivesse adormecido e as tuas palavras me chegassem em sonhos – num sonho bom. É verdade isto que eu te digo, Amália, juro! (Levanta a cabeça, fixando Amália) Queres saber?
Parece-me que a tua voz não é nova – coisa mais esquisita! -, que é antiga, antiga… que sempre a ouvi, sempre!... (Volta a apoiar a faxe sobre as mãos de Amália) É tão bom escutar as tuas palavras… Tão bom!...
AMÁLIA (muito suave, maternal): Quem me dera que tu fosses pequenino, António! Queria poder pegar-te ao colo, esconder-te todo nos meus braços… E sofro… Ai sofro muito! Porque já não posso fazê-lo. (Com um quase-espanto sincero.) Que crescido… Que grande, que alto que estás, António!
ANTÓNIO (infantil): Sei… Tenho a certeza de que não é de agora a tua voz… Ouvia-a muitas vezes, antes de te ver, Amália! Muitas vezes, muitas, muitas… escondida como um fio de água clarinha, no fundo na fala de outra gente, ou no vento, ou no mar: saltava de repente, como um relâmpago, e logo deixa de a escutar. Mas era ela, era a tua voz, Amália! E eu ficava todo a tremer, alagado em suores frios, com um gosto a sangue na boca…

2 comentários:

Seve disse...

Coincidiência...acabei ontem de ler "Nos mares do fim do mundo", uma crónica dos doze meses passados com os pescadores bacalhoeiros portugueses, pelo médico Dr.Bernardo Santareno, nos bancos da Terra Nova e da Gronelândia.

Sammy, o paquete disse...

Um dos muitos escritores portugueses completamente esquecidos. Triste país de esquecer os seus melhores. Tinha 16 anos quando li «Nos Mares do Fim do Mundo»
e não esqueço a felicidade que essa leitura me trouxe. A edição que existe na biblioteca da família é a da Ática de Junho de 1999. Ainda não consegui encontrar a edição fac-símile que o «Público lançou recentemente. Encomendei-a no quiosque do bairro e ainda estou à espera.