As coisas que perdemos choram por nós? As ovelhas
elétricas sonham com Roy Batty? Será que o meu casaco cheio de buracos se vai
lembrar dos momentos maravilhosos que passámos juntos? Dormir em autocarros de
Viena a Praga, noites na ópera, passeios junto ao mar, o túmulo de Swinburne na
Ilha de Wight, as arcadas de Paris, as cavernas de Luray, os cafés de Buenos
Aires. Uma experiência humana entrelaçada nos seus fios. Quantos poemas sangram
das suas mangas esfarrapadas? Distraí-me dele por um momento, atraída por outro
casaco mais quente e mais macio, mas de que eu não gostava muito. Porque perdemos
as coisas que amamos e coisas que nos são indiferentes se agarram a nós,
podendo tornar-se, depois de morrermos, símbolos de valor que tivemos?
E então ocorreu-me uma coisa. Talvez eu tenha
absorvido o meu casaco. Acho que devia estar-lhe grata, tendo em conta o seu
poder, por o meu casaco não me ter absorvido a mim. Se assim tivesse sido, eu
não teria senão mais uma coisa desaparecida, atirada para uma cadeira,
balançando cheia de buracos.
As nossas coisas perdidas de regresso aos sítios de
onde vieram, às suas origens absolutas: um crucifixo de volta à árvore de onde
saiu ou os rubis de volta à sua casa no oceano Índico. A génese do meu casaco,
feito de lã delicada, a girara ao contrário nos teares, de volta ao corpo de um
carneiro, um carneiro preto um pouco afastado do rebanho, a pastar na encosta
de uma colina. Um carneiro a abrir os olhos para as nuvens que, por momento, se
assemelham às costas cheias de lã de outros iguais a si.
Patti Smith em M Train
Sem comentários:
Enviar um comentário