quarta-feira, 13 de setembro de 2017

ASNEIRA TEM SIDO SEMPRE A MINHA VIDA


A 8 de Setembro de 1961, em S. Domingos de Rana («Sempre S. Domingos, irra!»)
Mário-Henrique volta a escrever a Maria Isabel, e lá para o fim da carta, declara o facto de «começo a gostar de si. Isto, Isabel, é uma coisa que me parece não dever ocultar-lhe, senão seria desonesto comigo mesmo.»

Cheguei há pouco de Lisboa e, a esta hora quase matinal de solidão, entendi que só aqui, nesta casa que já não é, poderia ficar e para aqui vim. Andei a vaguear entre o Marquês de Pombal e o querido D. Pedro V, entre a asneira ditatorial e a cretinice constitucional. Claro que, contra todas as regras da boa vizinhança, me atirei ao pick-up e fi-lo uivar sovieticamente com as canções do abençoado Exército Vermelho. À minha volta há lixo de cinza e mais cinza, muitos fósforos queimados e um enorme espaço vazio. Porque não vem encher esse espaço com o seu sorriso? Claro que você dará o seu sorriso a quem quiser e só deve dá-lo quando achar que vale a pena. Não faça esmolas com o seu sorriso nem tenha pena de ninguém, nunca tenha dó, que é o pior que se pode ter e o pior que se pode oferecer a alguém.
Isabel, passei o dia a pensar em si e parece-me que isto vai dar asneira comigo mesmo. Se der, ainda bem, que asneira tem sido sempre a minha vida e, apesar de tudo, tenho vivido com força. Estou até convencido que a asneira e o desespero são o potencial que me há-de levar a encontrar finalmente aquilo que procuro. Portanto, abramos os braços à asneira e à certeza dela. Isabel, amar é asneira para os lógicos calculistas, abandonar as pantufas e trocá-las por um saco de 2caçador da vida” é asneira para os mesmos lógicos. Tudo será asneira, quando queremos conseguir o nosso direito ao amor, à calma e à pouca felicidade que este mundo nos dá. Bem, então para o Inferno com os lógicos e continuemos a olhar o sol bem de frente e a acreditar na manhã.


Legenda: ilustração Shorpy

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