2 Textos à Pressão
Vitor Silva Tavares
Poster-Hors-Texte: Carlos Ferreiro
Contraponto Editora, Lisboa s/d
Ferreiro é
lisboeta, de 42. A sua crónica (retrato do artista quando jovem cão, por causa
da moral) engloba o pé-descalço, quartos interiores subalugados por negros
embarcadiços das carreiras da América ( ou o sonho desde logo a viajar,
insólito, exótico), as ruas do Vale Escuro, de Xabregas, do Poço do Bispo (as
ruas e o Tejo próximo e o gosto de peixe frito e as escanzelada malta do
berlinde – fecundo universo da infância que bem guardado nunca mais se
esquece), a primária na Calçada das Lajes, o primeiro emprego (marçano de
fanqueiro, aos 14) e a fulcral experiência determinante: dois anos no Cais da
Fundição como aprendiz de serralheiro.
Estão a ver: o
sabido menino pobre do Bairro Lopes ou da Vila Paulo, passados já os dias
breves da infância (da liberdade) descuidada, a ganhar 12$80 por dia entre
operários de Alfama (submetido às partidas de aprendiz: alicates a crestar as mãos,
martelos para desempenar borracha, etc.) e a encher os olhos de fuligens,
dejectos industriais, chapas metálicas, tuboladuras, cantoneiras, rebites,
maçaricos – a agressão. Qualquer bote no rio, gaivotas, pedaços de céu entre
esquinas de ferro são a fuga possível. Não contando com as fitas do
Cine-Oriente e os desenhecos à sucapa, com a esquerda.
Agora sim: mais por
determinação («Fazei mais o que souberdes») que por acidente, entra a António
Arroio na crónica, começa a aventura (o risco, a sorte) da vocação própria,
entendida (ainda e sempre) como trabalho, isto é, sem os voluntários,
complexados martírios dos diletantes. Porque Ferreiro não sabe nada da Arte,
não se ilustrou em cafés e compêndios, não aspira ao catálogo em couché, antes
ao pão e à alegria de estar certo. Temo-lo, na sequência, junto de amigos, em
ateliers gráficos, no Parque Mayer ajudando a cenografia, trabalhando em
publicidade, despedindo-se de ordenados certos para seguir servir gloriosos
malucos das máquinas de cinema (Fernando Lopes, o da «Abelha». João César
Monteiro, o dos «Sapatos de Defunto, etc.), fazendo biscates, ao sabor do que
vier, no justo.
Quando pica A
Mosca, os bonecos de Ferreiro estão na
rua a dez tostões (hoje a quinze), circulam nos eléctricos e autocarros, vão ao
encontro da imaginação das pessoas, vivem e morrem quase instantaneamente,
podemos encontra-los a embrulhar azeitonas, pevides ou castanhas. À margem dos
templos, fora das promoções mundanas, cumprem sua função – em directo.
Eis um caso raro de
coerência entre um artista (leia-se: um operário) e o destino social do seu
trabalho.
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