Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a
cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias.
Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao
cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o
Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do
mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo,
Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e,
se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim
entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual
aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem
o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo
constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais
veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro
e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao
Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família.
Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol,
pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é
exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império
britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de
amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de
velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por
trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe
rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de
um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de
castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça
cortina das águas que descem do céu fechado.
José Saramago em
O Ano da Morte de Ricardo Reis
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