Mário-Henrique volta, 2 de Setembro de 1961, a S.
Domingos de Rana para escrever a Maria Isabel. Não «cara porque é muitíssimo
pouco para o que desejaria dizer… e não uso mais nada… porque não.»
Estou aqui. No
pick-up está uma distante canção russa e em mim está um silêncio e uma solidão
quase magnífica. Em si espero que esteja, ao ler-me, uma alegria de viver e um
encanto nos olhos que irão até ao sorriso feliz.
Raios a partam por
causa da sua carta (deixe-me ser bruto, para não ser outra coisa). Se fosse
católico dir-lhe-ia: “Deus lhe pagará as suas palavras.” Mas não sou, graças
aos poderes infernais e, portanto, praguejo para não ser doce.
M.ª Isabel, não vou
agradecer-lhe as suas palavras, não vou agradecer-lhe nada do que escreveu.
Seria talvez ofendê-la. Eu nunca agradeço aquilo que me dão. Devolvo dando e
quando não tenho mais nada, dou um naco do que sou. Guarde, pois, para si, um
bom naco (dos maiores) daquilo que eu sou. Não se assuste, que não sangra e, se
sangrar, a cor até é bonita.
Não, M.ª Isabel,
não vou suicidar-me 2heroicamente”. Vou procurar uma boa cama para dormir,
visto que está vazia. Não pense que eu acredite em heróis, santos ou mártires.
Não, não acredito em muitos, mas no que acredito é no direito ao sono. Sabe o
que é a solidão? Creio que faz ideia, creio que sim, mas talvez nunca tivesse “bebido”
tão intensamente como eu.
Quando tudo está
vazio, quando abrimos uma gaveta e ela só deita nevoeiro, quando olhamos para
os pés e os vemos a caminhar. Sem companheira, para um deserto interminável, mais
vale dormir.
Diz na sua carta: “nós
precisamos de si”. Obrigado, é simpático mas não verdadeiro. Ninguém faz falta,
numa luta que é muito maior que o vulgar homenzinho quotidiano. Quem fica pelo
caminho é logo substituído, e se ficou foi porque não conseguiu ir até ao fim.
M.ª Isabel, houve
na sua carta uma coisa que me deixou de facto quase a engolir em seco. Você
falou num bebé de 7 meses que “infelizmente não era seu”. Isso, Mª Isabel, é
tão autêntico, tão humano, tão verdadeiro que magoa fisicamente ao ler. Sabe
você que é também um dos meus desastres, esse problema? Uma ânsia, um desejo
profundo meu foi sempre ter um ou dois fedelhos a estragarem-me os livros e a
sorrirem-me aos meu berros furibundos. Era aquilo que eu sonhava… mas a minha “estimada
esposa” tinha um programa quinquenal (era mesmo de cinco anos) antes dos
filhos. Primeiro frigorífico, máquinas de lavar e encerar, carro, seguros de
vida, etc. Só depois viria a descendência. Só o que existe agora é uma saudade
grande, uma saudade enorme dos gaiatos que nunca tive.
Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos
Legenda: ilustração de Victor Montoya
Sem comentários:
Enviar um comentário