Já se esqueceram que, logo em março, muitos hospitais privados começaram a cobrar aos utentes das consultas mais simples uma abusiva "taxa Covid" de 10 a 20 euros, que podia ir às centenas de euros no caso de uma cirurgia? E isto até para pagar equipamentos de proteção, banais e baratos, como máscaras e gel?
Já se esqueceram que
vários hospitais privados decidiram suspender as convenções com o Estado, no período de março a
abril, a até então fase mais difícil da pandemia do novo coronavírus, deixando
de dar apoio ao Serviço Nacional de Saúde quando este mais precisava?
Já se esqueceram que,
em setembro, foi notícia o facto dos hospitais privados recusarem fazer partos a grávidas com COVID, sem terem
avisado disso as mães que, durante a fase de acompanhamento da gravidez, iam lá
às consultas médicas?
Já se esqueceram que
no mês passado a Entidade Reguladora da Saúde teve de emitir um
comunicado, depois de receber várias queixas de utentes, a pedir aos hospitais
privados que recusam doentes com COVID-19 para avisarem antecipadamente os
utentes dessa decisão?
É totalmente
verdadeira a acusação de pessoas de direita a pessoas da esquerda de estas
defenderem o Serviço Nacional de Saúde por motivos ideológicos - o
pensamento de que o acesso a tratamentos médicos deve ser gratuito e de
qualidade idêntica para pobres e ricos condiciona a abordagem que qualquer
pessoa verdadeiramente de esquerda faz a este problema. Por mim, que sou de
esquerda, ainda bem que é assim.
Mas também é
totalmente verdadeira a acusação inversa: a de que as pessoas de direita
defendem por motivos ideológicos o favorecimento dos hospitais privados, mesmo
quando muitos deles defraudam clamorosamente, recorrentemente e gananciosamente
os seus clientes, o seu dever de responsabilidade social, a pureza da ética
médica. É o que está a acontecer com a operação "salvem os hospitais
privados" em curso.
O comunicado da
semana passada assinado pelo bastonário e ex-bastonários da Ordem dos
Médicos vai muito bem até ao parágrafo sete (a pressão sobre o Governo para
que garanta um Serviço Nacional de Saúde superlativo deve, até, ser
permanente, não limitada aos tempos de crise) mas, depois disso, atira-se ao
alarmismo para acabar a defender que "os setores de saúde sociais e
privados devem ser mais envolvidos no esforço covid e não-covid para que a
capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada".
Em primeiro lugar,
tal afirmação, para ser eticamente irrepreensível, deveria ser acompanhada por
uma declaração de interesses de cada um dos seis bastonários subscritores do
texto sobre as suas ligações à medicina privada - e aparentemente (basta uma
busca na Internet para o comprovar) todos têm essa ligação, desde o nível
básico de dar consultas num hospital ou num consultório privado, até ao mais complexo
de ter o seu nome como marca de uma rede de laboratórios.
Em segundo lugar, a
afirmação dos bastonários ignora uma questão de fiabilidade, dado o
comportamento desolador, largamente documentado, dos hospitais privados assim
que começou a pandemia: poderemos confiar neles para nos ajudarem nesta segunda
fase da doença?
Em terceiro lugar, há
a conta do contribuinte: no final do dia sai mais barato
ao Estado pagar a privados para prestarem serviço público ou a gastar
dinheiro em reforço dos seus meios humanos e técnicos? Ao longo de décadas
inúmeros relatórios do Tribunal de Contas põem largas dúvidas sobre a
vantagem da relação Estado-privados na Saúde.
E vou ignorar neste
artigo a questão da corrupção, seja a puramente criminal, seja a
institucionalizada e aceite como "normal" e até
"recomendável", que as várias vertentes do negócio da Saúde no século
XXI comportam: desde os preços dos medicamentos impostos pelos grandes
conglomerados da indústria farmacêutica até à promiscuidade do exercício
profissional da medicina, simultaneamente, no setor público e privado.
Acho aliás bastante
graça ao facto de o texto dos bastonários referir muito o SNS, limitando-se ao
equívoco da sigla, sem nunca explicar se se refere ao Serviço Nacional de
Saúde ou se utiliza a "novilíngua" que a direita inventou para
privatizar, na mente das pessoas, a prestação pública de cuidados de
saúde: Sistema Nacional de Saúde.
O texto dos
bastonários serviu de pretexto para o Presidente da República dar uma
finta ao governo e iniciar uma série de audiências ao atual e aos
ex-bastonários da Ordem dos Médicos, a outros bastonários das áreas
ligadas à saúde, a ex-ministros da saúde, a sindicatos, a confederações
sindicais e patronais, à própria ministra da Saúde - e adivinho a conclusão
do Presidente ir coincidir, quase na íntegra, com as teses dos
bastonários.
Simultaneamente, no
Parlamento, a esquerda tenta convencer o Governo a reforçar mais do que o
previsto o investimento no Serviço Nacional de Saúde - e aqui está,
palpita-me, o busílis da questão: com os novos fundos europeus que estão
prometidos, o que se passa, de facto, não é uma guerra para melhorar o
atendimento dos doentes, é a conquista para os privados da maior fatia possível
desse bolo.
Obviamente que se for
necessário usar os hospitais privados para salvar vidas a pessoas se deve
fazê-lo, e já. Mas transformar isso num instrumento para voltar a enfraquecer
o Serviço Nacional de Saúde - fazendo com que no pós-pandemia ele
dependa mais da "ajuda" privada - não é aceitável. Por motivos
ideológicos, sim, mas sobretudo, como se tem visto, porque não se pode confiar
neles.
Pedro Tadeu no Diário de Notícias on-line
2 comentários:
Os vampiros continuam por aí!
Eles sempre andaram nos céus cinzentos, mas ainda os conseguíamos ver, agora é mais difícil de os apanhar, deixaram o ar sisudo, sorriem mas continuam a enganar os incautos que, no fundo, é todo um povo… ou quase.
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