Princípio de Karenina
Afonso Cruz
Fotografias: Afonso
Cruz
Capa: Maria João Lima
Companhia das Letras, Lisboa, Novembro 2019
A impotência que
geravam, os silêncios aturados, as palavras sussurradas ou gritadas, os olhares
trocados, tudo aquilo me dava uma tremenda sensação de segurança. Eram majestosas
(mudas ou a rir, a carpir ou a orara) e, por mais dura que fosse a vida,
transmitiam ali, naquela estranha cumplicidade, a certeza de que tudo seguiria
em frente, de que haveria um dia após o outro, e todo o Universo se equilibrava
na ponta das suas pálpebras. Os gatos deitavam-se junto às suas pernas,
ronronavam encostados às varizes e a pele seca do sol e por vezes uma delas
cantava uma canção tão velha que cheirava a pedras vulcânicas. Soltavam os pés dos
sapatos, descalçando-se ou deixando metade de fora, os calcanhares apoiados no
chão. Espantavam-me os seus joanetes, as unhas grossas , mas sobretudo o modo
como os dedos tinham perdido a suavidade da infância para exibirem a pressão
dos outros dedos. Já não eram redondos e diáfonos, mas moldados pela pressão
dos outros dedos. Eram assim essas mulheres, feitas umas das outras. A sua
forma era definida por quem vivia com elas. Eu olhava para o pátio ao fim da
tarde e via como todas eram moldadas pelas palavras, pelo risos, pela mudez que
ali iam construindo, minuto a minuto, os séculos que elas carregavam nos
corações. Quando eu corria (o meu pai não poderia estar a ver), desajeitado,
assimétrico e desequilibrado. Pelo pátio, pelo meio delas, respirava a
densidade de mil sóis. Elas, imperturbáveis como os gatos que se deitavam aos
seus pés, tratavam-me como se eu fosse apenas o vento que passava por entre as
árvores. Sei que a felicidade de uma criança, da criança que eu era, apenas
corroborava a atitude mitológica com que olhavam o mundo r, por mais sombrios
que fossem os tempos, elas tranquilizavam o cosmos, como quem penteia os
cabelos no meio de terremoto.
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