quinta-feira, 4 de março de 2021

OLHAR AS CAPAS


Princípio de Karenina

Afonso Cruz

Fotografias: Afonso Cruz

Capa: Maria João Lima

Companhia das Letras, Lisboa, Novembro 2019

A impotência que geravam, os silêncios aturados, as palavras sussurradas ou gritadas, os olhares trocados, tudo aquilo me dava uma tremenda sensação de segurança. Eram majestosas (mudas ou a rir, a carpir ou a orara) e, por mais dura que fosse a vida, transmitiam ali, naquela estranha cumplicidade, a certeza de que tudo seguiria em frente, de que haveria um dia após o outro, e todo o Universo se equilibrava na ponta das suas pálpebras. Os gatos deitavam-se junto às suas pernas, ronronavam encostados às varizes e a pele seca do sol e por vezes uma delas cantava uma canção tão velha que cheirava a pedras vulcânicas. Soltavam os pés dos sapatos, descalçando-se ou deixando metade de fora, os calcanhares apoiados no chão. Espantavam-me os seus joanetes, as unhas grossas , mas sobretudo o modo como os dedos tinham perdido a suavidade da infância para exibirem a pressão dos outros dedos. Já não eram redondos e diáfonos, mas moldados pela pressão dos outros dedos. Eram assim essas mulheres, feitas umas das outras. A sua forma era definida por quem vivia com elas. Eu olhava para o pátio ao fim da tarde e via como todas eram moldadas pelas palavras, pelo risos, pela mudez que ali iam construindo, minuto a minuto, os séculos que elas carregavam nos corações. Quando eu corria (o meu pai não poderia estar a ver), desajeitado, assimétrico e desequilibrado. Pelo pátio, pelo meio delas, respirava a densidade de mil sóis. Elas, imperturbáveis como os gatos que se deitavam aos seus pés, tratavam-me como se eu fosse apenas o vento que passava por entre as árvores. Sei que a felicidade de uma criança, da criança que eu era, apenas corroborava a atitude mitológica com que olhavam o mundo r, por mais sombrios que fossem os tempos, elas tranquilizavam o cosmos, como quem penteia os cabelos no meio de terremoto.

 Colaboração de Sara Calisto

Sem comentários: