Dito
já que começaram as iniciativas que visam
registar o centenário do nascimento de José Saramago, acrescenta-se que irei
pegando num qualquer livro de José Saramago e copiarei dele uma frase, um
parágrafo, aquilo que constitui os milhares de sublinhados que, ao longo
dos muitos anos de leituras, invadiram os livros de José Saramago que habitam
a Biblioteca da Casa.
Hoje peguei em O Ano da Morte de Ricardo Reis, um
livro pelo qual tenho uma muito especial simpatia.
Largamente
sublinhado, tantas vezes lido, ao ponto de há uns anos ter adquirido um outro
volume (20ª edição) porque a 1ª edição estava a desfazer-se, escolhi este
pedacinho:
«…
quando Lídia entrou para vir buscar a bandeja afligiu-se, O senhor doutor não
gostou, e ele disse que tinha gostado, pusera-se a ler o jornal, distraíra-se,
Quer que mande fazer outras torradas, aquecer outra vez o café, Não é preciso,
fico bem assim, o apetite também não era grande, entretanto levantara-se e para
sossegá-la pusera-lhe a mão no braço, sentia a cetineta da manga, o calor da
pele, Lídia baixou os olhos, depois deu um passo para o lado, mas a mão
acompanhou-a, ficaram assim alguns segundos, enfim Ricardo Reis largou-lhe o
braço, e ela agarrou e levantou a bandeja, as porcelanas tremiam, parecia que se
estava dando um abalo de terra com o epicentro neste quarto duzentos e um, mais
precisamente no coração desta criada, e agora afasta-se, tão cedo não vai
serenar, entrará na copa e pousará a louça, a mão pousará no lugar onde a outra
esteve, gesto delicado que há-de parecer impossível em pessoa de tão humilde
profissão, é o que estará pensando quem se deixe guiar por ideias feitas e
sentimentos classificados, como talvez seja o caso de Ricardo Reis que neste
momento se recrimina acidamente por ter cedido a uma fraqueza estúpida,
Incrível o que eu fiz, uma criada, mas a ele o que lhe vale é não ter de
transportar nenhuma bandeja com louça, então saberia como podem tremer
igualmente as mãos de um hóspede. São assim os labirintos, têm ruas, travessas
e becos sem saída, há quem diga que a mais segura maneira de sair deles é ir
andando e virando sempre para o mesmo lado, mas isso, como temos obrigação de
saber, é contrário à natureza humana.»
Legenda:
pintura de Jakub Schikaneder
1 comentário:
Gostei muito do MEMORIAL DO CONVENTO mas talvez ainda mais do ANO DA MORTE DE RICARDO REIS - que grande livro-!
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