sexta-feira, 10 de novembro de 2023

CAVALO DOS SONHOS

Desnecessário, vendo-me nos espelhos,

com um gosto a semanas, biógrafos, papéis,

do coração arranco o capitão do inferno,

estabeleço cláusulas indefinidamente tristes.

 

Absorvo ilusões, erro de ponto em ponto,

converso com os alfaiates em seus ninhos:

amiúde, eles, com voz fatal e fria,

cantam e fazem fugir os malefícios.

 

Um extenso país no céu existe

com os supersticiosos tapetes do arco-íris

e as vegetações crepusculares:

para lá me dirijo, não sem certa fadiga,

pisando terra mexida de sepulcros recentes,

sonho entre essas plantas de legumes confusos.

 

Passo por documentos desfrutados, entre origens,

vestido como um ser original e abatido:

amo o mel usado do respeito,

o doce catecismo entre cujas folhas

dormem violetas envelhecidas, esvaídas,

e as vassouras, comovedoras de auxílio,

na sua aparência há, sem dúvida, desgosto e certeza. 

Destruo a rosa que assobia e a ansiedade raptora:

quebro extremos queridos: e, ainda mais,

aguardo o tempo uniforme, sem medida:

deprime-me um sabor que tenho na alma.

Que dia aconteceu! Que espessa luz de leite,

compacta, digital, me favorece!

Ouvi relinchar seu cavalo vermelho,

nu, sem ferraduras e radiante.

Com ele atravesso sobre igrejas,

galopo nos quartéis desertos de soldados

e um exército impuro me persegue,

Os seus olhos de eucalipto roubam sombra,

o seu corpo de sino galopa e vai batendo.

 

Preciso de um relâmpago de fulgor persistente,

de um parente festivo que assuma a minha herança.

 

Pablo Neruda

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