O jornal Público tem novos directores, mas o ultra liberalismo, o liberalismo continuam.
Um jornal que, nos seus princípios,
chegou a ser uma referência, agora está cada vez mais intragável.
Apenas consigo ler alguns dos seus
cronistas, não chegam aos dedos de uma mão.
É o caso de Ana Cristina Leonardo e a
sua crónica às sextas-feiras, no suplemento Ipsilon:
«Um homem, trabalhador camarário, foi encontrado morto junto a um barranco.
Esteve desaparecido durante dois dias. Trabalhava há 35 anos para o município.
Não se sabe quando morreu nem o motivo da morte. Sexagenário e solteiro,
manejava sozinho a escavadora com que ia terraplanando terrenos lá para os
confins do concelho. Um trabalho solitário regido por uma folha de serviço. Um
amigo veio visitá-lo e deu pela sua falta. Tinham passado dois dias. Foi quando
o foram procurar e o encontraram. Ao Silvestre. Morto junto ao barranco. A
máquina, um esqueleto em ferro, suspensa no declive.
Houve quem dissesse, sem pingo de revolta: “Agora já cá não está para contar
como foi”. Poucos questionaram a demora em lançar o alerta perante o sumiço do
trabalhador. Menos ainda questionaram que manejasse a máquina desacompanhado.
Houve quem, relutantemente, imaginasse a lenta agonia do homem caído, a noite
longa, as pernas partidas, as constelações e uma lua vermelha no céu –
demasiada realidade é sempre difícil de imaginar. Que tenha morrido logo! É o
que nos resta desejar. E arruma-se o caso como se de uma fatalidade se
tratasse.
Ah! A fatalidade! Uma crueza que terá menos de desamor do que de golpe de génio
adaptativo. Como sobreviver sem encarar como banal o que sempre se conheceu como
inevitável? Não falo da morte que nos iguala a todos, antes de uma espécie de
rendição ao fado. Quanto mais pobre e triste, mais colado à pele. Pobreza
entranhada, atávica, anestésica.
(…)
Diz a mulher mais perspicaz aqui do monte (falávamos de Silvestre): “Mas como é
que ninguém deu pela falta dele? Não atendia o telemóvel, a carrinha continuava
no mesmo sítio sem ele a ter ido buscar, não apareceu ao encontro que estava
combinado… Não sei… Isto é cada vez mais cada um por si. Uma aflição, este desligamento”.»
Ana Cristina Leonardo, de uma crónica no Público
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