domingo, 5 de novembro de 2023

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


«Não é a primeira vez que o digo. Lá em casa foi tudo preso pelo menos uma vez. Escapou o gato chamado Pompidou. Reconheça-se: um belíssimo nome para gato. A escolha resultou da vitória de Georges Pompidou nas eleições presidenciais francesas de 1969. Fora Alain Poher o eleito, e Poher, muito menos adequado, teria sido. Escapou o gato e escapei eu graças à minha proverbial mania de descumprir horários.


A reunião dos estudantes de Liceu estava marcada para Lisboa no Instituto Superior de Economia (hoje ISEG). Sem aviso prévio, e ironicamente por razões de segurança, foi mudada para a Faculdade de Medicina. Ora tendo eu já chegado atrasada a Económicas, muito mais atrasada cheguei ao Hospital de Santa Maria. Resultado: quando cheguei a Santa Maria já tinha seguido tudo de ramona para o Governo Civil. E foi assim que a 16 de Dezembro de 1973, desistindo de continuar a calcorrear a capital atrás da PIDE e para mais ao domingo, ilesa, apanhei o comboio e fui para casa. Confirmo: era domingo.
(…)

Chegava-se a Caxias por um caminho de terra ladeado por chorões rastejantes de madeixas coloridas, o mar azul ao fundo. Hospital prisional, Caxias era sobretudo o grande refeitório de mesas redondas onde as visitas se sentavam lado a lado com os reclusos a partilhar o inevitável frango assado, prato nacional de todas as ocasiões. Havia até um quadro preto em ardósia e paus de giz brancos para as crianças se entreterem, poupando-as à intimidade triste dos adultos.

Peniche era outra coisa. Uma coisa mais parecida com o inferno. Começava cedo. Uma camioneta arrastava-se e vencia curvas e contracurvas conduzindo-nos penosamente ao destino. Os ziguezagues da estrada, o cheiro do combustível, a comida requentada. O vómito era certo. Chovia quase sempre. Frio. Vento. O mar revolto. Peniche para mim será sempre Inverno. A prova de que a memória é traiçoeira: as viagens a Peniche duraram praticamente três anos. Várias estações.

O quarto onde por vezes pernoitávamos (eu e a minha mãe) destilava humidade. A dona da pensão vestia de preto. Pequena, magra, medrosa, um fio de voz. Talvez a invente assim.
No Forte, um corredor interpunha-se entre as visitas e os presos. Pelo corredor pavoneava-se um guarda peripatético que batia os pés. Por vezes, os presos faziam greve às visitas; outras, estavam de castigo (a expressão usada) e eram-lhes recusadas. O vómito tinha sido em vão.

À saída, a reunião fugaz dos familiares parecia trazer normalidade. Conversas, cumprimentos, correrias de crianças, gestos de apoio e cumplicidade. Era quase uma festa aos olhos inocentes de uma criança. A inocência é uma bênção. Depois perdemo-la.»

Ana Cristina Leonardo, de uma crónica no Público.

Legenda: fotografia do Público.

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