quarta-feira, 29 de novembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Quando foi publicado o 1º volume dos Cadernos de Lanzarote não fiquei muito entusiasmado com a ideia. Mas no fundo dos fundos sempre era escrita e trabalho de José Saramago, de quem nunca se espera que nos ofereça fruta bichada, pelo que não podia ficar indiferente.

Na página 54 do 4º volume dos Cadernos, Saramago teve o cuidado de deixar uma indicação:

«Na verdade, terá de vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.» 

Passados todos estes anos e deixando de lado as invejas incompreensões de seus pares, colocando à margem muita prosa datada dos Cadernos, terei que dizer que muito aprendi com a leitura dos Cadernos.  

Um interessante livro de Fernando Gómez Aguilera, José Saramago. O Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte, acabado de ler, contém um capítulo que intitulou «A figura do Caminhante», a propósito dos 3 primeiros volumes dos Cadernos de Lanzarote.

Hoje, debruço-me no começo dessa prosa:

 

«A figura do caminhante, que avança sobre a cinza em direcção a um fundo de montanhas, anuncia um homem de passo firme, esclarecido. No entanto, o seu aspecto não é o de quem está habituado a lidar com a terra áspera e com o caminhar. Então o que procura ele na sua deslocação? Dirige-se para algum destino em concreto? Espera-o porventura uma mulher a quem deseje abraçar, contar uma fábula ou partilhar uma inquietação?
Parece movido por uma vontade enérgica, amparado na porosa tela da sua memória ou no anelo de uma terra flamante para os seus olhos. À sua volta, a região desenha-se negra, inóspita e vazia, exceto de calma, de beleza e de luz. É um homem ágil, de aparência jovem, apesar da idade. Poder-se-ia tratar de alguém que caba de escrever num caderno palavras dilacerantes na sua ternura, por exemplo: «Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente é isto a velhice.»

(Diário II-1994, 7 de Julho) Tratar-se-á porventura de um passeante que avança no silêncio da sua conversa, entre o caudal das palavras escritas e as palavras por dizer? Um caminhante que vive nos livros e com eles modela a respiração dos seus dias e sonhou com o cume das colinas a que sobe, agarrado à memória de uma criança especialista em rios, ribeiras e olivais:

«Subi ontem a Montaña Blanca. O alpinista do conto tinha razão: não há nenhum motivo sério para subir às montanhas, salvo o facto de elas estarem ali.

Desde que nos instalámos em Lanzarote que eu andava a dizer a Pilar que havia de subir todos estes montes que temos por trás da casa, e ontem, para começar, fui-me atrever com o mais alto deles. É certo que são apenas seiscentos metros acima do nível do mar, e, na vertical, a partir do sopé, serão aí uns quatrocentos, ou nem isso, mas este Hillary já não é criança nenhuma, embora ainda muito capaz de suprir pela vontade o que lhe for faltando de forças, pois em verdade não creio que sejam tantos os que, com esta idade, se arriscassem, sozinhos, a uma ascensão que requer, pelo menos, umas pernas firmes e um coração que não desista.»

(Diário I-1993, 9 de maio)

 

Lembrava-me desta entrada nos Cadernos, de que agora tanto gostei de reler e parti do princípio de que estaria sublinhada. Não está e deveria estar!

Se eu tivesse qualquer dúvida, ficaria a saber da importância que existe em ler os autores de que tanto gostamos, mais de uma vez.

Já agora, acrescento a parte final da entrada que Gómez Aguilera não cita:

«A descida, feita pela parte da montanha que dá para San Bartolomé, foi trabalhosa, bem mais perigosa do que a subida, pois o risco de resvalar era constante. Quando, enfim, cheguei ao vale e à estrada que vai para Tías, as tais firmes pernas minhas, com os músculos endurecidos por um esforço para que não tinham sido preparados, mais pareciam trambolhos que pernas. Ainda tive de caminhar uns quatro quilómetros para chegar a casa. Entre ir volver, tinham-se passado três horas. Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: «Se caio e aui me mato, acabou-se, não farei mais livros.» Não liguyei ao aviso. A única coisa relamente importante que tinha para fazer naquele momento, era chegar lá acima.»

 

Interessante o pormenor:

 

«Se caio e aqui me mato, acabou-se, não farei mais livros.»

 

Legenda: Selo comemorativo dos Correios espanhóis pelos 100 anos do nascimento de  José Saramago.

3 comentários:

Seve disse...

"CADERNOS DE LANZAROTE" - Pérolas da Literatura (creio que serão seis volumes) - absolutamente imperdíveis.

Seve disse...

Ora aqui está uma bela homenagem de Espanha (em selo) a um escritor português; e Portugal o que faz? diz que não gosta porque os seus livros nem têem pontuação...até dá dó.

Sammy, o paquete disse...

Caro Seve,
São mesmo 5 volumes, a que terá de se acrescentar um «Último Caderno de Lanzarote», encontrado no disco rígido de um dos computadores utilizados por Saramago e publicado em Outubro de 2018.
José Saramago tem inteira razão quando escreveu que quem o quiser conhecer terá mesmo de descer aos textos do Caderno de Lanzarote.