Quando foi publicado o 1º volume dos Cadernos de Lanzarote não fiquei muito entusiasmado com a ideia. Mas no fundo dos fundos sempre era escrita e trabalho de José Saramago, de quem nunca se espera que nos ofereça fruta bichada, pelo que não podia ficar indiferente.
Na
página 54 do 4º volume dos Cadernos, Saramago teve o cuidado de deixar uma
indicação:
«Na verdade, terá de
vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.»
Passados todos estes anos
e deixando de lado as invejas incompreensões de seus pares, colocando à margem
muita prosa datada dos Cadernos, terei que dizer que muito aprendi com a leitura
dos Cadernos.
Um interessante livro de
Fernando Gómez Aguilera, José Saramago. O Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte, acabado de ler, contém um capítulo
que intitulou «A figura do Caminhante»,
a propósito dos 3 primeiros volumes dos Cadernos de Lanzarote.
Hoje, debruço-me no começo
dessa prosa:
«A figura do
caminhante, que avança sobre a cinza em direcção a um fundo de montanhas,
anuncia um homem de passo firme, esclarecido. No entanto, o seu aspecto não é o
de quem está habituado a lidar com a terra áspera e com o caminhar. Então o que
procura ele na sua deslocação? Dirige-se para algum destino em concreto?
Espera-o porventura uma mulher a quem deseje abraçar, contar uma fábula ou partilhar
uma inquietação?
Parece movido por uma vontade enérgica, amparado na porosa tela da sua memória
ou no anelo de uma terra flamante para os seus olhos. À sua volta, a região
desenha-se negra, inóspita e vazia, exceto de calma, de beleza e de luz. É um
homem ágil, de aparência jovem, apesar da idade. Poder-se-ia tratar de alguém
que caba de escrever num caderno palavras dilacerantes na sua ternura, por
exemplo: «Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente
é isto a velhice.»
(Diário II-1994, 7
de Julho) Tratar-se-á porventura de um passeante que avança no silêncio da sua
conversa, entre o caudal das palavras escritas e as palavras por dizer? Um
caminhante que vive nos livros e com eles modela a respiração dos seus dias e
sonhou com o cume das colinas a que sobe, agarrado à memória de uma criança
especialista em rios, ribeiras e olivais:
«Subi ontem a
Montaña Blanca. O alpinista do conto tinha razão: não há nenhum motivo sério
para subir às montanhas, salvo o facto de elas estarem ali.
Desde que nos
instalámos em Lanzarote que eu andava a dizer a Pilar que havia de subir todos
estes montes que temos por trás da casa, e ontem, para começar, fui-me atrever
com o mais alto deles. É certo que são apenas seiscentos metros acima do nível
do mar, e, na vertical, a partir do sopé, serão aí uns quatrocentos, ou nem
isso, mas este Hillary já não é criança nenhuma, embora ainda muito capaz de
suprir pela vontade o que lhe for faltando de forças, pois em verdade não creio
que sejam tantos os que, com esta idade, se arriscassem, sozinhos, a uma
ascensão que requer, pelo menos, umas pernas firmes e um coração que não
desista.»
(Diário I-1993, 9
de maio)
Lembrava-me desta entrada nos Cadernos, de que agora tanto
gostei de reler e parti do princípio de que estaria sublinhada. Não está e deveria
estar!
Se eu tivesse qualquer dúvida, ficaria a saber da
importância que existe em ler os autores de que tanto gostamos, mais de uma vez.
Já agora, acrescento a parte final da entrada que Gómez
Aguilera não cita:
«A descida, feita pela parte da montanha que dá para San Bartolomé, foi trabalhosa, bem mais perigosa do que a subida, pois o risco de resvalar era constante. Quando, enfim, cheguei ao vale e à estrada que vai para Tías, as tais firmes pernas minhas, com os músculos endurecidos por um esforço para que não tinham sido preparados, mais pareciam trambolhos que pernas. Ainda tive de caminhar uns quatro quilómetros para chegar a casa. Entre ir volver, tinham-se passado três horas. Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: «Se caio e aui me mato, acabou-se, não farei mais livros.» Não liguyei ao aviso. A única coisa relamente importante que tinha para fazer naquele momento, era chegar lá acima.»
Interessante o pormenor:
«Se caio e aqui me
mato, acabou-se, não farei mais livros.»
Legenda: Selo comemorativo dos Correios espanhóis pelos 100 anos do nascimento de José Saramago.
3 comentários:
"CADERNOS DE LANZAROTE" - Pérolas da Literatura (creio que serão seis volumes) - absolutamente imperdíveis.
Ora aqui está uma bela homenagem de Espanha (em selo) a um escritor português; e Portugal o que faz? diz que não gosta porque os seus livros nem têem pontuação...até dá dó.
Caro Seve,
São mesmo 5 volumes, a que terá de se acrescentar um «Último Caderno de Lanzarote», encontrado no disco rígido de um dos computadores utilizados por Saramago e publicado em Outubro de 2018.
José Saramago tem inteira razão quando escreveu que quem o quiser conhecer terá mesmo de descer aos textos do Caderno de Lanzarote.
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