quinta-feira, 2 de novembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Pegamos hoje em O Ano de 1993 e retiramos este poema:

 

Nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro

        lugar nos desloquemos a ele

Mas uma razão haverá para que a todas as horas do dia venham

         andando grupos de pessoas na direcção da rua das estátuas

Estão dispensados os roteiros e os mapas uma vez que todos

          os caminhos vêm dar a esta rua e não a Roma onde ainda

          hoje não faltam as estátuas mas nenhuma que a estas se

          compare

Não é difícil chegar basta olhar o chão e seguir sempre pelos

           caminhos mais pisados também reconhecíveis pelas duas alas

           de excrementos que os ladeiam

O sol resseca-os rapidamente e se a chuva os desfaz nunca tanto

           que restitua o chão a uma qualquer virgindade

O homem aprendeu enfim a orientar-se sem bússola chega-lhe

           passar por onde outro homem passou antes

As pessoas vão conversando numerosamente e de vez em quando

           uma separa-se do grupo e vai agachar-se ao lado

Enquanto os outros se afastam devagar atrasando o passo para

           que não fique para trás aquele que assinalará o caminho

Passado o último horizonte é que está a rua das estátuas

Nenhum excremento nas imediações

E eis que cinquenta estátuas de cada lado incrivelmente brancas

       mas a que os jogos das luzes e das sombras alternadas fazem

       mover os membros e as feições

Mostram a quem passa vindo de longe como poderiam ter sido

        os homens

Pois há motivos para pensar que nunca foram assim

 

O verso «nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro lugar nos desloquemos a ele» faz-nos lembrar o livro de Saramago Viagem a Portugal publicado em Março de 1981, pelo Círculo de Leitores, um dos livros mais notáveis surgidos, nesse ano, em Portugal, e que irá constituir o grande salto para a consagração do autor.

Este belíssimo livro, profusamente ilustrado, passa a constituir um marco na literatura portuguesa e beneficia da projecção que o Circulo de Leitores tinha por todo o país. Note-se, que a 1ª edição teve uma tiragem de 30.000 exemplares.

Um Portugal visto com outros olhos, longe do guia turístico, longe dos livros de viagens, um Portugal que muitos desconheciam, também muitos ainda desconhecem, escrito com um brilho, uma força e um sentir só possíveis a quem verdadeiramente ama o seu país. Um olhar terno, humano, vigilante.

«O viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando, significa que foi durante muitas semanas, um espelho reflector das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo.»

Do prefácio:

 «Mal vai a obra se lhe requerem prefácio que a explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto. Acordemos, então, que não é prefácio isto, mas aviso simples ou prevenção, como aquele recado derradeiro que o viajante, já no limiar da porta, já postos os olhos no horizonte próximo, ainda deixa a quem lhe ficou a cuidar das flores. Diferença, se a há, é não ser o aviso último, mas primeiro. E não haverá outro.

Resigne-se pois o leitor a não dispor deste livro como de um guia às ordens, ou roteiro que leva pela mão, ou catálogo geral.(…) o autor não vai dar conselhos, embora sobreabunde em opiniões. (…) Sem dúvida, o autor foi aonde se vai sempre, mas foi também aonde se vai quase nunca… (…) o viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando, significa que foi, durante muitas semanas, um espelho reflector das imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo.

Eis o que este livro quis ser. E o que supõe ter conseguido um pouco. Tome o leitor as páginas seguintes como desafio e convite. Viaje segundo um seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem. E, se lho pedir a sensibilidade, registe por sua vez o que viu e sentiu, o que disse e ouviu dizer. Enfim, tome este livro como exemplo, nunca como modelo. A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.»

Tempo ainda para rondar as palavras com que o viajante José Saramago encerra o seu livro:

«Este é o país do regresso. A viagem acabou.

Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na arei da praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. "O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.»

Legenda: ilustração de Graça Morais paraAno de 1993 de José Saramago.

 

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