Pegamos hoje em O Ano de 1993 e retiramos este poema:
Nenhum
lugar é suficientemente belo na terra para que doutro
lugar nos desloquemos a ele
Mas
uma razão haverá para que a todas as horas do dia venham
andando grupos de pessoas na direcção
da rua das estátuas
Estão
dispensados os roteiros e os mapas uma vez que todos
os caminhos vêm dar a esta rua e não
a Roma onde ainda
hoje não faltam as estátuas mas
nenhuma que a estas se
compare
Não
é difícil chegar basta olhar o chão e seguir sempre pelos
caminhos mais pisados também
reconhecíveis pelas duas alas
de excrementos que os ladeiam
O
sol resseca-os rapidamente e se a chuva os desfaz nunca tanto
que restitua o chão a uma qualquer
virgindade
O
homem aprendeu enfim a orientar-se sem bússola chega-lhe
passar por onde outro homem passou
antes
As
pessoas vão conversando numerosamente e de vez em quando
uma separa-se do grupo e vai
agachar-se ao lado
Enquanto
os outros se afastam devagar atrasando o passo para
que não fique para trás aquele que
assinalará o caminho
Passado
o último horizonte é que está a rua das estátuas
Nenhum
excremento nas imediações
E
eis que cinquenta estátuas de cada lado incrivelmente brancas
mas a que os jogos das luzes e das
sombras alternadas fazem
mover os membros e as feições
Mostram
a quem passa vindo de longe como poderiam ter sido
os homens
Pois
há motivos para pensar que nunca foram assim
O verso «nenhum lugar é suficientemente belo na terra para que doutro lugar nos
desloquemos a ele» faz-nos lembrar o livro de Saramago Viagem a Portugal publicado em Março de 1981, pelo Círculo de Leitores, um dos livros mais
notáveis surgidos, nesse ano, em Portugal, e que irá constituir o grande salto
para a consagração do autor.
Este belíssimo livro, profusamente
ilustrado, passa a constituir um marco na literatura portuguesa e beneficia da
projecção que o Circulo de Leitores
tinha por todo o país. Note-se, que a 1ª edição teve uma tiragem de 30.000
exemplares.
Um Portugal visto com outros olhos,
longe do guia turístico, longe dos livros de viagens, um Portugal que muitos
desconheciam, também muitos ainda desconhecem, escrito com um brilho, uma força
e um sentir só possíveis a quem verdadeiramente ama o seu país. Um olhar terno,
humano, vigilante.
«O
viajante viajou no seu país. Isto significa que viajou por dentro de si mesmo,
pela cultura que o formou e está formando, significa que foi durante muitas
semanas, um espelho reflector das imagens exteriores, uma vidraça transparente
que luzes e sombras atravessaram, uma placa sensível que registou, em trânsito
e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo.»
Do prefácio:
«Mal vai a obra se lhe requerem prefácio que a
explique, mal vai ao prefácio se presume de tanto. Acordemos, então, que não é
prefácio isto, mas aviso simples ou prevenção, como aquele recado derradeiro
que o viajante, já no limiar da porta, já postos os olhos no horizonte próximo,
ainda deixa a quem lhe ficou a cuidar das flores. Diferença, se a há, é não ser
o aviso último, mas primeiro. E não haverá outro.
Resigne-se
pois o leitor a não dispor deste livro como de um guia às ordens, ou roteiro
que leva pela mão, ou catálogo geral.(…) o autor não vai dar conselhos, embora
sobreabunde em opiniões. (…) Sem dúvida, o autor foi aonde se vai sempre, mas
foi também aonde se vai quase nunca… (…) o viajante viajou no seu país. Isto
significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está
formando, significa que foi, durante muitas semanas, um espelho reflector das
imagens exteriores, uma vidraça transparente que luzes e sombras atravessaram,
uma placa sensível que registou, em trânsito e processo, as impressões, as
vozes, o murmúrio infindável de um povo.
Eis
o que este livro quis ser. E o que supõe ter conseguido um pouco. Tome o leitor
as páginas seguintes como desafio e convite. Viaje segundo um seu projecto
próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto
pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário,
persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor
viagem. E, se lho pedir a sensibilidade, registe por sua vez o que viu e
sentiu, o que disse e ouviu dizer. Enfim, tome este livro como exemplo, nunca
como modelo. A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é,
provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e
comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.»
Tempo ainda para rondar as palavras com
que o viajante José Saramago encerra o seu livro:
«Este
é o país do regresso. A viagem acabou.
Não
é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se
em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na arei da
praia e disse: “Não há mais que ver”, sabia que não era assim. "O fim duma
viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra
vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que
se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o
fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É
preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos
novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta
já.»
Legenda: ilustração de Graça Morais paraAno de 1993 de José Saramago.
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