terça-feira, 3 de outubro de 2017

POSSO MORRER DE FOME MAS NÃO PEÇO ESMOLA


A 30 de Setembro de 1961, Mário-Henrique escreve à «Doce Maruska, minha garota do sorriso tão bonito e tão distante», de Dukla, onde se encontra a trabalhar numa mina de carvão.

«Nada afinal acontece como queremos… nada. Temos que ir abrindo o caminho a murro, se queremos seguir em frente.»

Dá conta que o navio cargueiro onde embarcara afinal «não rumou à Letónia e marcou destino para Helsínquia (conveniência de carga… nada como existir mundo capitalista…). Assim ao saber da coisa desembarquei furiosamente em Londres, após questão azeda com o venerável e heróico comandante.»

Permanece uns dias em Londres, segue para Bremerhaven.

«A 24 estava na Checoslováquia. Burocracia (cá colo lá e lá como cá). Perguntas. Respostas. Pode seguir… Comboio. Praga. Comboio. Fome. Sono. Pulgas. Dukla. Minas de carvão. Aqui estou, desde 27 de manhã. Galeria 11, seria esta a minha morada, se eu tivesse morada. Foi aqui, exactamente nesta galeria, que em Julho morreram 108 mineiros, por causa (que causa?) de um incêndio. Talvez por superstição, por uma superstição muito eslava, poucos querem trabalhar aqui. Eu quero; gosto de ver como é e tentar a sorte. Amor, sabes como é o inferno? Se existisse (não existe, só há inferno dentro de nós), se existisse era exactamente assim: um homem perdido na sua solidão, horas e horas numa galeria onde se morreu para dar carvão e calor aos de lá de cima, entre uma lanterna e dois camaradas silenciosos (não posso falar com eles; não sei os sons que eles sabem. Apenas sorrir e dar murros nas costas…), um homem batendo-se contra uma parede negra com uma perfuradora pneumática nas mãos, um homem sonhando enquanto esmurra a Terra. Esta é a nossa maldição, meu amor, a nossa maldição mas também a nossa força: viver no inferno e sonhar com aquilo que acreditamos. Nós somos mais fortes que os deuses, pois até os inventámos! Nós podemos fazer mais que os deuses que criámos; podemos morrer, não somos imortais, podemos sofrer e amar, podemos construir novos mundos e novos deuses.»

A carta é longa e Mário-Henrique prossegue a exigência de o seu amor ser correspondido e pede «uma resposta honesta, calma, distante e só quente se sentires esse calor dentro de ti. Por favor, querida, não me dês piedade; não precisos dela, detesto-a, posso morrer de fome mas não peço esmola. Não me dês também um engano de ti.»

Em  Depoimentos Escritos

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