A 30 de Setembro de 1961, Mário-Henrique escreve à «Doce Maruska, minha garota do sorriso tão
bonito e tão distante», de Dukla, onde se encontra a trabalhar numa mina de
carvão.
«Nada afinal
acontece como queremos… nada. Temos que ir abrindo o caminho a murro, se queremos
seguir em frente.»
Dá conta que o navio cargueiro onde embarcara afinal «não rumou à Letónia e marcou destino para
Helsínquia (conveniência de carga… nada como existir mundo capitalista…). Assim
ao saber da coisa desembarquei furiosamente em Londres, após questão azeda com
o venerável e heróico comandante.»
Permanece uns dias em Londres, segue para Bremerhaven.
«A 24 estava na
Checoslováquia. Burocracia (cá colo lá e lá como cá). Perguntas. Respostas.
Pode seguir… Comboio. Praga. Comboio. Fome. Sono. Pulgas. Dukla. Minas de
carvão. Aqui estou, desde 27 de manhã. Galeria 11, seria esta a minha morada,
se eu tivesse morada. Foi aqui, exactamente nesta galeria, que em Julho
morreram 108 mineiros, por causa (que causa?) de um incêndio. Talvez por
superstição, por uma superstição muito eslava, poucos querem trabalhar aqui. Eu
quero; gosto de ver como é e tentar a sorte. Amor, sabes como é o inferno? Se
existisse (não existe, só há inferno dentro de nós), se existisse era
exactamente assim: um homem perdido na sua solidão, horas e horas numa galeria
onde se morreu para dar carvão e calor aos de lá de cima, entre uma lanterna e
dois camaradas silenciosos (não posso falar com eles; não sei os sons que eles
sabem. Apenas sorrir e dar murros nas costas…), um homem batendo-se contra uma
parede negra com uma perfuradora pneumática nas mãos, um homem sonhando
enquanto esmurra a Terra. Esta é a nossa maldição, meu amor, a nossa maldição
mas também a nossa força: viver no inferno e sonhar com aquilo que acreditamos.
Nós somos mais fortes que os deuses, pois até os inventámos! Nós podemos fazer
mais que os deuses que criámos; podemos morrer, não somos imortais, podemos
sofrer e amar, podemos construir novos mundos e novos deuses.»
A carta é longa e
Mário-Henrique prossegue a exigência de o seu amor ser correspondido e pede
«uma resposta honesta, calma, distante e só quente se sentires esse calor
dentro de ti. Por favor, querida, não me dês piedade; não precisos dela,
detesto-a, posso morrer de fome mas não peço esmola. Não me dês também um
engano de ti.»
Em Depoimentos Escritos
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