segunda-feira, 20 de maio de 2013

PAPOILAS SALTITANTES


Eu tinha jurado que não queria. Que se acabou. Que estava farto. Que não me interessava mais. Fui ao ponto de tirar da estante Moviflor o cãozinho de barro, à porta da casota de barro, que anuncia em maiúsculas “Cá em casa até o cão é do Benfica”. Ofereci ao porteiro a águia de bronze que me custou um dinheirão, com 36 centímetros de asas desfraldadas, colocada em cima do “naperon” do televisor a presidir à novela.

Guardei na cave do prédio a fotografia a cores, emoldurada em talha, da equipa inesquecível que ganhou a Taça dos Campeões Europeus em 1962: Alberto da Costa Pereira; Mário João, Germano de Figueiredo e Ângelo Gaspar Martins; Domiciano Barroca Gomes Cavém e Fernando da Conceição Cruz, o “Pardalito do Bairro da Liberdade”; José Augusto Pinto de Almeida, Eusébio da Silva Ferreira, o “Pantera Negra”, José Pinto de Carvalho Águas, o “Grande Capitão”, Mário Esteves Coluna, o “Monstro”, e António Simões Costa.

Desembaracei o vidro traseiro do Fiat Uno do autocolante vermelhíssimo que proclamava I Love Benfica (os outros dois consenti que ficassem: o “Gosto de carros rápidos, de cerveja fria e de mulheres quentes” e o “Perca peso imediatamente: pergunte-me como”). Desprendi, do espelho retrovisor, o par de botinhas de futebol em miniatura e o galhardete com o emblema do clube. Mudei o testamento em que pedia que acabadinho de morrer me equipassem de encarnado e branco, me pusessem a bandeira do glorioso por cima do caixão e me enterrassem no cemitério de Benfica, na colina voltada para o estádio. E nunca mais cantei no banho:

“A chama imensa / que leva a palma /
à luz intensa / do sol/que lá no céu /
risonho vem beijar / com orgulho muito seu /
as camisolas berrantes / que nos campos
a vibrar / são papoilas saltitantes.”

O divórcio é total. Completo. Absoluto. Irreversível. Não dei dinheiro para a campanha de recuperação financeira. Não comprei os jornais desportivos. Não me interessarei pelo «Remate». Vi o senhor Sousa Cintra no aeroporto e não tive vontade de lhe bater. O senhor Pinto da Costa cessou de incomodar-me. A contratação de Ailton deixou-me inteiramente frio. Os jogadores é que ganham dinheiro, os jogadores que sofram. A publicidade é para os dirigentes, os dirigentes que assinem as letras. Tenho a minha vidinha. Tenho família a sustentar. Não me apetece apanhar uma doença do coração. Era o que me faltava. Tenho mais que fazer.

A meio da semana, soube por acaso que davam em directo o Porto-Benfica, no domingo, às 8 horas. Permaneci de gelo. Ando a acabar um romance e é o romance que me interessa. O romance que necessita de meses de correcções e emendas para ser publicado no final do ano que vem. Que exige uma atenção permanente. Imenso trabalho. Paciência infinita. Futebol? Nem pensar.

Hoje, domingo, comecei a escrever, cedíssimo, o penúltimo capítulo, sem que o Benfica me viesse sequer à ideia. Não entendo por isso que, às três da tarde, ao alargar o colarinho que me incomodava, haja encontrado um cachecol à volta do pescoço. Não compreendo como às cinco, quando cocei a cabeça a meditar num adjectivo, dei com um boné com uma águia. Não percebo o que é que às sete e meia transformou a esferográfica num pau de bandeira. Não fui eu quem fez isso, palavra, e ainda estou para saber quem gritou à minha filha “Não mudes de canal”, quando a pobre criança pegou no comando para a sua dose de desenhos animados. Lembro-me vagamente de ela me perguntar “Então, não escreve hoje?”. Lembro-me de a minha sogra apontar para a estante: “Olha o cão”. Lembro-me de a minha esposa apontar para o televisor: “Olha a águia”. Lembro-me de a minha cunhada apontar para a parede: “Olha a equipa”.

Ignoro quem me trouxe essa tralha para casa. Juro. Não me ralo com o futebol. Não me ralo com o Benfica. Não me ralo com as papoilas saltitantes. Mas merecíamos ganhar. O filho da mãe do árbitro roubou-nos. Somos os melhores do mundo. Vamos ser campeões. E lembra-me, amanhã, quando te for buscar ao escritório, de passarmos pela capelista para comprar um galhardete novo para o espelho retrovisor. Não é que eu ligue ao desporto. Sabes bem que não ligo. É porque o Uno fica mais bonito.

António Lobo Antunes, Público Magazine, 12 de Setembro de 1993.

Legenda: campo de papoilas perto de Pirgos, Santonini, Grécia
               Fotografia de Tom Pfeiffer..

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