sexta-feira, 17 de maio de 2013

UM SENHOR DE MATOSINHOS


No livro Óscar Lopes – um Homem Maior Que o Seu Tempo estão incluídos dois textos assinados por Vasco da Graça Moura: O Direito de Esperar e Óscar Lopes, o Professor dos Professores.

Neste último escreve:


Nunca fui aluno directo de Óscar Lopes e todavia sempre me senti como se o tivesse sido. Foi no convívio fascinado com muito do que ele escreveu e com muito do que lhe ouvi, que aprendi a ler os nosso grandes autores antigos e modernos, a lançar pontes de uns para ao outros, a procurar neles o que os torna tão vitalmente “nossos contemporâneos”, apesar das distâncias que são, pre vezes, consideráveis no tempo e no espaço.

Mas Vasco Graça Moura tem um lindíssimo poema dedicado a Óscar Lopes, a que chamou Um Senhor de Matosinhos, que consta do seu  livro Uma Carta no Inverno e publicado, em 1999, pela Quetzal 


andava eu no liceu: no salão nobre
dos paços do concelho em matosinhos,
um professor, o óscar lopes, vinha

mostrar à noite que a literatura

importa a toda a dignidade humana.
iam autores ouvi-lo, jornalistas,

estudantes, gente que ali morava

e outra que do porto em carro eléctrico,
o “um” para leixões, o “dezasseis”,

passando à carvalhosa, vinha sempre,

lá estavam joão guedes, tonitruante,
e júlio gesta, afável e risonho,

manuel dias da fonseca, mais calado,

augusto gomes e suas lentes grossas
a enevoar-lhe o olhar de ver as praias

rasas de cinza e luto, com vareiras

por trágicos naufrágios ululando,
o egito, que então já se escrevia

com os poetas todos deste mundo,

o eugénio, de cachecol esvoaçante,
a modelar os gestos e os ditongos

medindo mãos e frutos, depurando

sílaba a sílaba, a sua incandescência
devia ser outono, ou mesmo inverno,

e fazer frio, e não faltava um torpe

sujeito de soslaio e bloco-notas,
tomando apontamentos com minúcia,

que a subversão quanto mais culta mais

impalatável era. fuzilavam-no
amigas minhas com o olhar, ficavam

mais belas só por essa exaltação

contida e faiscante de amazonas,
foi quando eu soube que as mulheres sabiam

resistir por instinto e se tornavam

mais agilmente elásticas no corpo,
mais livres e arriscadas nos seus gestos,

e no limite a cor afogueava-as,

e tão fulva energia em nenhum verso
coube jamais, que eu saiba, então na sua

voz calma e portuense, óscar falava

dos livros, dos autores, como quem trata
de assuntos de família e os desarruma

para os mostrar melhor, e acontecia

que isso era irrepetível e sem pompas,
como outra intimidade ao nosso alcance:

é sempre desconforme a literatura.

é mal-estar, princípio de prazer,
é trabalho forçado e liberdade

e um modo mais verbal de estar no mundo,

e nesse mar óscar lançava as redes
da pesca milagrosa, aquela terra

tinha essas tradições mais literais,

orlas de oralidade e maresia,
e embarcávamos todos na traineira

e era outra vez o senhor de matosinhos

com ex-votos à roda: impaciências
de passado e presente na palavra

e, entre a vida e a morte, o seu fulgor

em que, por crespas ondas, falar era
também filosofar e rebeldia.

tinham saído alguns discos recentes,

gravados por poetas: eu recordo
a voz do régio num, que achei roufenha

dos ensimesmamentos presencistas,

e vozes de combate que também
prestavam para pouco, mas sabia

tão bem partir a louça no salão

daquela edilidade, assim nas barbas
de toda a gente, era porém mais justa

a medida de que óscar nos falava

pois fazia pensar e punha em causa.
e alguém pedia às vezes um poema

quando a noite avançava e alguém dizia

outras coisas em código e ficavam
depois pequenos grupos à saída

como em cinemas de província, como

quem tem mais a dizer e veio vindo
devagar até aqui e aqui se encontra,

à espera de outro eléctrico ronceiro,

e vai falando tempos esquecidos,
sem pressa e sem vontade de ir embora.

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