O coração é uma arte difícil. Mas tudo o resto é a
crédito.
José Amaro Dionísio
Agora mesmo, por exemplo, abri a janela e olhei
para o céu.
Lá estava a Lua, a tonta! A Lua bolorenta que
ninguém estoira com dinamite ou atravessa com flechas. A Lua redonda.
Fechei a janela com furor.
E sentei-me à mesa a desenhar uma paisagem nocturna, saudosamente iluminada por uma lua quadrada.
José Gomes
Ferreira em Imitação dos Dias
Em Novembro de
1975, o Conselho de Administração da Lisnave convocava uma Assembleia Geral
Extraordinária.
Agatha Christie
Tradução:
Mascarenhas Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro
nº 151
Livros do
Brasil, Lisboa s/d
O céu já escurecera quando ele chegou junto ao barco
que fazia a travessia do rio.
Podia ter chegado muito mais cedo. A verdade é que o
adiara tanto quanto pudera.
Primeiramente, o almoço com os camaradas no Redquay; a conversa ligeira e vaga, a tagarelice acerca de amigos comuns – tudo isso apenas significava que, intimamente, se esquivava a fazer o que devia. Os amigos tinham-no convidado a ficar para o chá e ele aceitara. Mas, por fim, chegara o momento em que compreendera não poder a adiar as coisas por mais tempo.
escrevo o que
ainda não conheço
nomes de ruas
pássaros árvores
monólogos de
quem ainda te fala alto
é a minha voz ou a tua?
lá fora a chuva confunde-se com gestos
falamos do tempo, ponte entre o silêncio e o nada
ouve, quando não fores capaz de falar, toca-me
Maria Sousa em Resumo: a poesia em 2010
Manuel de Freitas
Mantém os teus amigos
perto de ti e os teus inimigos mais perto ainda.
Michael
Corleone em O Padrinho II, filme Francis Ford Coppola.
Além disso, o Monte-Carlo, bem perto da casa dele
(onde hoje é a Zara) foi durante algum tempo um lugar de encontro que apagava
tristezas. O Abril de 74 afastou-nos: o tempo era de menos, as coisas eram de
mais. Os horários e os sítios (pelo menos para mim) mudaram. E para mim também,
durante um tempo, a literatura e as artes solitárias apagaram-se.
Eduarda Dionísio, do testemunho sobre Carlos de Oliveira no número da Relâmpago dedicado ao poeta.
Legenda: onde
hoje está a Zara, era o Monte Carlo
Nenhum Homem é Estrangeiro
Joseph North
Tradução:
Fernanda Pinto Rodrigues
Posfácio: Ruben
de Carvalho
Notas: António
Belmiro Guimarães
Edições Avante,
Lisboa, Fevereiro de 1981
Desde que, em garoto, ia levar o almoço ao meu pai, à
fábrica, não me lembro de nenhuma greve em que não me tenha sentido do lado dos
trabalhadores. Isso mantém-se sem alteração. Os marxistas chamam a tal facto
«consciência de classe», isto é, a compreensão de que pertencemos à classe
operária e que as suas aspirações são sagradas. Mesmo antes de pertencer ao
movimento da classe operária, já considerava os piquetes grevistas sagrados, o
«fura» detestável e o patrão o inimigo irrevogável.
para o Rui Miguel
Ribeiro
Quando tudo é mentira,
a mentira torna-se invisível
como o dedo do encenador.
O pano sobe, de fumo,
e nada representa nada
nem ninguém.
Às escuras, o público sorri,
o público aplaude, julgando
seguir, entender a história.
Se um grama de verdade,
todavia, custa hoje
setecentas ilusões apodrecidas
e o preço da entrada
é suspensão da descrença,
só de fora é perceptível
o entrecho da decomposição,
com seus ritos e porquês
assinalados a vermelho:
o vinho do desejo cultivado
em bardos de necessidade,
a bolha esburacada da democracia,
a corrente de facadas e suturas
a que chamamos progresso,
o beco sem saída da evolução.
José Miguel
Silva em Resumo: a poesia em 2013
Assim começa A Peste de Albert Camus.
Neste momento o mundo luta contra uma epidemia, a que deram o nome de Covid-19, fazendo todos os esforços (?) para que as populações sejam vacinadas o mais depressa possível, sabendo-se de antemão que assim não acontecerá.
Dizem os especialistas que a idade é o factor que mais peso tem na mortalidade por Covid-19. Os dados actuais mostram que as pessoas com 70 ou mais anos que morreram com Covid-19 são 88% do total de óbitos.
1.
O porta-contentores Ever Given partiu da China com uma carga de 22 mil contentores com destino ao porto de Roterdão tendo, a meio caminho, encalhado na parte mais estreita do Canal do Suez que é ponto de passagem de 12% do comércio mundial e do transporte do petróleo consumido no mundo.
Diariamente calcula-se que mais de 50 navios atravessam o canal.
Naqueles contentores embarcados nono Ever Given, encontram-se matérias-primas que servirão as mais diversas fábricas espalhadas pelo mundo.
O navio já seguiu viagem com destino a Roterdão, e dentro de alguns dias, é possível fazer uma primeira estimativa dos prejuízos resultantes da paralisação, porque, além do Ever Given, mais de 237 navios, incluindo 24 petroleiros e 41 porta-contentores estiveram a aguardar a possibilidade de cruzar o Canal.
Esta paralisação, e tudo o que a envolve, faz lembrar um poema de Henrique Segurado intitulado a Apologia dos Pequenos Nadas:
«No gerador
central
Bem lá no fundo
Entalada
Numa certa
cavidade
A asa de uma
mosca
Pequenina…
E falta a
energia na cidade!
(Saibamos
antever a nossa meta
No cadáver duma
mosca incompleta!)»
2.
Janice Deul,
activista holandesa negra, emitiu opinião escrita num jornal que a editora de
Amanda Gorman que escreveu e declamou o poema "The Hill We
Climb". na tomada de posse de Joe
Biden, nunca deveria ter escolhido Marieke Lucas Rijneveld uma tradutora
holandesa que é branca demais, antes devia ter escolhido alguém assumidamente
negra. "Uma escolha incompreensível, na minha opinião e na de muitos
outros que expressaram a sua dor, frustração, raiva e decepção através das
redes sociais", insistiu Deul. "É uma oportunidade perdida."
Amanda Gorman e
a sua editora, acolheram a ideia da activista e procuram nova tradutora.
O mundo está repleto
de gente cada vez mais cada vez mais estúpida e terrivelmente insuportável.
3.
Segundo a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, Portugal está na cauda da Europa no que toca a hábitos de leitura.
4.
As quotas portuguesas na pesca do bacalhau sofreram um corte de 200 toneladas.
5.
Acreditem que
faço os mais sérios esforços para entender, minimamente, alguns acontecimentos
que vão ocorrendo no país:
- a venda de
barragens entre a EDP e a Engie. O que consegui ler aponta para o simples facto
de que o governo teve conhecimento da negociata.
- os CTT
praticam, miseravelmente, a sua obrigação de prestarem o serviço que, a preço
de saldo, acordaram com o governo Passos/Portas e que, agora descobriram que
não era sustentável, nem economicamente interessante, exigindo serem compensada
pelos prejuízos que a pandemia lhes trouxe.
- Isaltino de Morais admira Rui Rio e acredita mesmo que um dia ele vai ser primeiro-ministro.
- O novo Banco, com prejuízos de 1329 milhões de euros em 2020, vai pedir 598,3 milhões ao fundo de Resolução.
Um médico nem sequer
pode chorar. Só pode pegar no bracito magro e morno, apertar a artéria morta e
ficar uns segundos a trincar os dentes. Depois sair sem dizer nada.
Quem saberá por aí uma
palavra para estes momentos? Uma palavra para um médico dizer a esta mãe, que
entregou à vida um filho vivo e recebeu da vida um filho morto.
Miguel
Torga em Diário Vol. I
Gente de Palmo e Meio
Augusto Gil
Guimarães Editores, Lisboa 1913
- Gosta do mar? preguntou-me
Disse-lhe que não… E justifiquei: A beleza só é
perfeita quando equilibrada e serena. Ora o mar é a intranquilidade eterna.
Demais, a grandiosidade deixa de ter beleleza se não fôr variada. E o mar é
monótono: uma onda, outra onda, e outra, e outra ainda… Lembra-me os dramas do
velho Hugo: sempre, sempre sempre alexandrinos…
- Para que é falso? ralhou ela com um gostozinho de
amuada .
E depois, com a literária fluência de quem repetia o
que muitas vezes pensára, ou até de quem reproduzia alguma página do seu diário
íntimo, acrescentou:
- Deus fez com a água a epopeia da humildade.
- Da humildade?... interroguei surpreso.
- Sim , humildade. Encha com ela uma taça de oiro e
tomará a forma da taça. Deite-a depois num vaso tosco de barro humilde e vê-la
há humildemente aconchegar-se às linhas rudes dêsse vaso ingénuo.
Em
tempos de Troika (ainda se lembram da dita?) o governo de direita de Pedro Passos
Coelho e Paulo Portas, impuseram aos portugueses 12 dias de indemnização por
cada ano de trabalho (com o limite máximo de 20 anos).
O
PCP, o BE, o PAN e o PEV apresentaram propostas no Parlamento para a reposição
dos montantes e das regras de cálculo das indemnizações por despedimento dos
trabalhadores.
Há
dias, todas essas propostas foram chumbadas com os votos do Partido Socialista
e de toda a direita.
Aproveito
para roubar o título do poema do Alexandre O’ Neill:
«Que vergonha,
rapazes!»
Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»).
Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: — Ó Roque, com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
— Bem queria, Sr. 0'Neill! E... as varizes?
Alexandre
O'Neill em De Ombro na Ombreira
Comércio com o Inimigo
José Rodrigues
Miguéis
Capa: Armando
Alves
Colecção Duas
Horas de Leitura nº 21
Editorial Inova,
Porto, Julho de 1973
Fico de novo só entre as vozes electónico-angélicas,
em plena multidão dos vivos, eu, que sonhei ressuscitar os mortos (ou
ressuscitar-me dentre eles). Recomeçar a cada instante, ou periodicamente, a
vida nova: não é essa a mensagem do Santo Solstício? Por isso o festejamos. A
vida que perpetuamente renasce das cinzas que somos, o Cristo dentre os mortos,
o eterno devir, a esperança ou certeza do dia, quando a noite nos afoga. Mas
hoje não, é tarde. Agora é tarde. Há quantos anos eu aturo isto! Tudo a
recomeçar, noutro plano e talvez noutra vida, noutro mundo. Eu passo e eles
ficam. (Como elas!) Deixá-los ficar. O meu Natal é outro, é outra a minha Cruz.
Vou sempre em sentido contrário, incoincidente.
Desço a Quinta Avenida, a gente vai rareando, a luz e
o amor decrescem, como as decorações. Até que mergulho de novo nos bairros
obscuros, calados e desertos.
Afinal não me ocorreu a ideia! Paciência, talvez para
o ano que vem.
Ainda não é hoje que escrevo, o Conto Alegre de Natal.
Renata Correia
Botelho já por aqui andou, a lembrar Lhasa de Sela, estava o ano no seu
primeiro dia.
Voltou hoje com
outro poema, tempo de recordar Lhasa de Sela que tão cedo nos deixou.
foi talvez a nossa última canção.
oiço ainda os corpos a vincar a noite,
um campo minado de corações tristes
explodindo o rosto na parede.
muitas músicas depois
quando as paredes eram já outras
e nas caras se perdiam novos nomes
voltei a ela: ficara-me sempre, afinal,
um terrível verso solitário
e a culpa de a ter levado
a um coração onde as canções
morreriam de frio.
Renata Correia Botelho em Resumo: a poesia em 2010
Entrada de Jesus Cristo em Jerusalém.
No dia seguinte,
ouvindo a grande multidão que viera à Festa, que Jesus ia chegar a Jerusalém,
tomou ramos de palmeira e saíu-Lhe ao encontro, clamando:
Hossana! Bendito
seja Aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!
Do Evangelho Segundo São João.
Legenda: Entrada Triunfal em Jerusalém, quadro de Pietro Lorenzetti.
Colaboração de Aida Santoso de R
O meu pai tem uma colecção de discos metidos em caixas de papelão, arrumadas
contra a parede do quarto, que se vai enchendo da poeira do Novo México. Nesta
colecção, o campeão é um Al Johnson original em 78 rotações, com a capa colada
com fita adesiva e até a fita está meio rasgada. Da última vez que o vi, tentou
convencer-me a levar o disco para L.A. e a vendê-lo por uma boa maquia. Está
convencido de que vale, pelo menos mil dólares. Talvez mais, consoante o
mercado. Diz que, nos últimos tempos, tem perdido o contacto com os negócios.
Sam Shepard em Crónicas Americanas
Legenda: fotografia Shorpy
O Testamento
Fiama Hasse pais
Brandão
Capa: José da
Câmara Leme
Colecção Novos
Dramaturgos nº 2
Portugália
Editora, Lisboa, Dezembro de 1962
A moral desta história é, para o público, um pau de
dois bicos. É a moral da injustiça e a moral da justiça, a moral da razão e a
da prepotência. Cada qual tirará a moral a seu modo, conforme o conteúdo do
porta-moedas. Num teatro, a moral é directamente proporcional ao preço do
assento.
Hoje apenas tenho uma notícia para todos: Só o medo
subsiste. Agora só o medo resiste ainda. Em todos os bancos só os cheques do
medo têm cobertura. É medo que abre trincheiras contra o futuro, o medo da paz
que comanda as batalhas. A pólvora do medo alastra pela nossa cidade. O medo
devora o medo.
Só pelas mãos a vitória é possível. Só as mãos, o
suor, os corpos, hão-de arrombar os cofres do luxo e do excesso do medo.
Nunca teve
certezas de nada, também sabe que não serve de exemplo para ninguém.
Ainda no outro
século, o médico que lhe prestava assistência no posto da Junta de Freguesia, perguntou-lhe
por vacinas, fossem elas quais fossem. Tirando as que teve que tomar durante a
tropa, nunca mais as frequentou. É conveniente, por Outubro, tomar a vacina
contra a gripe, disse-lhe o médico. Nunca está engripado, acabou por responder.
Mas pode vir a estar, ripostou. Se tiver que ser, vamos a isso e, a partir daquele
ano, por Outubro vacina-se.
Os tempos agora
são de pandemia. Aguarda que o chamem para ser vacinado contra o Corvid-19.
Não consegue
entender como há gente-anti-vacinas. Tanta gente, mesmo.
Não lhes chama
qualquer nome mas, pensa, que não estão a agir correctamente. Contudo, se não
querem ser vacinados, pelo menos não incitem os outros a seguir o mesmo caminho.
Omar Khayyam, um
poeta e astrónomo persa que morreu com 83 anos, escreveu esta frase:
«Se os que amam
o vinho e o amor vão para o inferno, então o paraíso deve estar vazio.»
Está um bonito
dia de sol, a temperatura está bem amena.
Que bem sabe
ouvir I Love you, Porgy neste velho EP.
Numa entrevista ao Expresso (06.02.2016), por ocasião dos 50 anos dos Cinco Minutos de Jazz, perguntaram-lhe por um episódio destes longuíssimos minutos de jazz, o José Duarte respondeu:
Fui a uma rádio em Los Angeles, que passa jazz 24 horas por dia. O edifício era lindo, alto, todo em vidro. Era o início dos anos 70, o João ainda era vivo. Eu tinha levado comigo uma cassete da Nina Simone a tocar piano. O apresentador fez-me perguntas, estranhou onde era Portugal, expliquei-lhe que se nadasse sempre em frente chegaria a Lisboa. E quando lhe contei que tinha um programa de cinco minutos fechou o microfone, pensava que eu me tinha enganado no inglês! No fim, pôs a minha cassete da Nina Simone e ia caindo da cadeira: nunca a tinha ouvido só a tocar o piano. Saí daquela rádio orgulhoso.
Um orgulho tão grande que, certamente, no regresso a Lisboa, obrigaram o José Duarte a pagar excesso de bagagem.
Desde há muito que somos prisioneiros,
mortos muito antes de nascermos,
heróis predestinados ao silêncio das cadeias e à
pobreza.
As notícias de beleza que nos chegam são erradas,
e baionetas crescem a cercar-nos.
Sitiados é que somos, embora
nenhuma baioneta evite o voo e o gesto de ir além.
Junto às portas, janelas e canteiros,
o arame farpado da propriedade alheia.
Pouco mais,
além da madrugada oferecida em prenúncio de esperança.
Prisioneiros das cidades e das vozes,
Somos ainda mais cercados de os amigos o serem também,
e até as flores.
Nunca entretanto sobre nós pode a força
Dos arames cortantes e das grades,
Que sob os pés pisados o abismo
Nunca é bastante para s nossas asas.
Eduardo Valente
da Fonseca em 71 Poemas
«Debati-me diante da tua face como a fêmea do açor no seu primeiro cobrimento. Mas a tua saliva vestiu-me de branco o dentro do corpo.
Maria Velho da Costa em Corpo Verde
-Há coisas
preciosas que me foram tiradas e criaram uma situação que nem com muito
trabalho posso ultrapassar, et cetera.
Está a perceber o que eu quero dizer?
- Não estou a perceber
muito bem. Refere-se só ao envelhecer, ou há mais qualquer coisa em particular?
- Acho que só me
referia ao envelhecer.
- Agora percebo.
- Isto está a dar
cabo de mim, portanto o melhor é ir-me embora. Não vou obedecer ao meu impulso
de tentar beijá-la.
- É melhor não.
- Não nos levaria a
lado nenhum.
- Tem razão. Mas
foi bom que tivesse cá vindo esta tarde. Foi muito bom.
- Você é uma
sedutora?
- Não, não, de
maneira nenhuma.
- Tem um marido,
tem um amante, e agora quer ter-me a mim como amigo. Colecciona homens? Ou são
os homens que a coleccionam a si?
- Acho que já colecionei
homens e eles já me coleccionaram a mim.
- Você só tem
trinta anos. Já colecionou muitos homens?
- Não sei quantos
são muitos.
- Quero eu dizer,
desde que deixou a faculdade, entre a festa de fim de curso e esta tarde, que
terminou consigo a colecionar-me com o seu poder de sedução… Mas agora está a
comportar-se como uma criança, como ase não tivesse esse poder. Nunca ninguém
lhe disse que tinha esse poder?
- Já me disseram.
Mas agora estava-me a rir porque se você se considera um homem coleccionado,
não sei como hei-de contar os homens que já colecionei.
Philip Roth em OFantasma Sai de Cena
Os Funerais da Mamã Grande
Gabriel Garcia
Márquez
Tradução: E.B.
Publicações
Europa-América, Lisboa s/d
A inquietação começou em Julho, quando a Sr.ª Rebeca,
uma viúva amargurada que vivia numa imensa casa de dois corredores e nove
quartos, descobriu que as persianas das janelas estavam rasgadas como se
tivessem sido apedrejadas da rua. A primeira descoberta foi feita no seu
quarto, e pensou que deveria falar sobre aquilo com Argénida, sua criada e
confidente desde que o seu marido morrera. Depois, revirando os seus trastes
(pois havia muito tempo que a Sr.ª Rebeca não fazia outra coisa senão revirar
os seus trastes), descobriu que não só as persianas do seu quarto, mas todas da
casa estavam estragadas.
O seu sangue no meu
braço é quente como um pássaro
o sei coração na
minha mão pesado como chumbo
Os seus olhos
através dos meus brilham mais que o amor
Oh manda-nos o
corvo antes da pomba Senhor
A sua vida na minha
boca é menos que um homem
a sua morte no meu peito
é mais pesada que pedra
Os seus olhos
através dos meus brilham mais que o amor
Oh manda-nos o
corvo antes da pomba senhor
Oh manda-nos o
corvo antes da pomba Senhor
Oh canta apesar das
algemas do fundo dessa prisão
os teus olhos
através dos meus brilham mais que o amor
o teu sangue detém
a morte desta canção
Oh canta apesar das
algemas do fundo dessa prisão
Os teus olhos
através dos meus brilham mais do que o amor
O teu coração na
minha mão é pesado como chumbo
o teu sangue no meu
braço é quente como um pássaro
Oh que rompa entre
os teus ramos o ramo verde do amor
depois do corvo ter morrido em vez da pomba do Senhor
Leonard Cohen em Filhos da Neve
O Duelo
Anton Tcheckoff
Tradução: Cordeiro de Brito
Prefácio; Adolfo Casais Monteiro
Capa: Augusto Gomes
Vasco Rodrigues, Editor, Porto 1938
- Minha querida,
estou comovida e consternada. O nosso bondoso e querido doutor disse ontem ao
meu Nikodine Alexandreitch que o seu marido morreu. Diga-me, minha querida! Mas
há males que vem por bem. O seu marido era sem dúvida nenhuma um homem nobre, excepcional;
um santo. E os homens como êle são mais precisos no céu do que na terra.
Porque escrevemos?,
pergunta em uníssono o grande coro de quem escreve.
Porque não nos podemos limitar a viver.
Porque choras? –
pergunta uma voz.
- Não sei – respondo. – Certamente é porque me sinto feliz.
No comboio,
continuo a escrever febrilmente, como se tivesse ressuscitado de um mar de
recordações. O Alain desvia os olhos do livro e olha pela janela. O tempo
contrai-se. Quase sem nos darmos conta, estamos a chegar a Paris. O Aurélien
dorme.
Ocorre-me a ideia de que os jovens parecem belos quando estão a dormir, ao passo que os velhos, como eu, parecem já mortos.
Patti Smith em Devoção
A mulher que me
prepara a carne
é tão bela como o sol.
Mas o cavalo que eu
cavalgo
é mais belo do que
todas as mulheres.
Aiá ah!
Eu quero que me
queimem um braço
se me roubarem o
meu cavalo!
O meu cavalo e eu,
eu e o meu cavalo
Somos um único e
mesmo ser.
Aiá ah!
Quando percorre cem
léguas,
todo o seu pêlo espuma
como a neve na
Primavera!
E relincha de
contentamento!
Aiá ah!
As raparigas nas
tendas
escutam o vento a
galopar
e dizem uma para as
outras:
Lá vai Purev com o
seu cavalo branco!
Aiá ah!
Canto popular da Mongólia, traduzido por António Ramos Rosa em
O Armindo dizia sempre que era no Tagarro que se comiam as melhores pataniscas de bacalhau.
O Helder Pinho dizia que ao Tagarro não ia porque
havia lá uma empregada que era informadora da PIDE.
A tristeza invadia o rosto do Armindo, que acrescentava
que comíamos só as pataniscas, não falávamos de política.
O Helder perguntava como se podia jantar sem falar de
política.
Tudo acabava na cave de um tasco que havia ali ao fundo
da Calçada do Carmo, junto àquelas escadinhas que dão acesso à Rua 1º de
Dezembro, o «Adriano», chamava-se o tasco. Nunca havia pataniscas, e o Helder
falava sempre dos planos para, num ápice, deitar o Salazar abaixo.
O Armindo para fugir à guerra, deu o salto para Grenoble
e nunca mais dele ouvimos falar.
O Salazar, por um Verão, batera com a cabeça no chão da esplanada de um forte junto ao Tejo, pancada de que veio a morrer.
Foram uns militares que, cansados de muita coisa, deitaram o Marcelo abaixo.
Quando depois encontrei, na rua, o Helder mandou-me à
cara que tinha que ser a merda dos militares!
Tive a vaga ideia de saber o que ele queria dizer, mas
não me lembro do que então lhe disse. Ainda não lera Philip Roth:
«Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com muita
frequência a própria pessoa menos do que as outras.»
Há mais de um ano que não vou ao cinema.
Como nasce o desespero dos dias?
Estamos neste desespero há mais de um ano.
Quanto mais tempo?
Depois de tantos sacrifícios, depois de a situação
aliviar um pouco, seremos os mesmos?
Que filme terei visto no S. Jorge naquela 5ª feira de 1 de
Setembro de 1966?
Eu, que, nas costas do bilhete, até colocava o filme que
tinha ido ver, com quem.
Desta vez está tudo em branco.
Colaboração de Aida Santos
O Enigma das Cartas
Anónimas
Agatha Christie
Tradução: Maria do Carmo Pizarro
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 320
Livros do Brasil, Lisboa s/d
Tenho recordado
muitas vezes a manhã em que recebemos a primeira carta anónima.
Chegou quando
tomávamos o pequeno-almoço e abria-a com o modo ociosos de alguém para quem o
tempo passa devagar e deve fazer render ao máximo cada acontecimento. Reparei
que era uma carta local com o endereço escrito à máquina. Abri-a primeiro que
as outras duas, ambas com o carimbo postal de Londres, por uma delas ser, sem
sombra de dúvida, uma conta, e, na outra, ter reconhecido a letra de uma das
minhas maçadoras primas.
Agora parece estranho recordar que Joana e eu ficámos mais divertidos com a carta do que com outra coisa qualquer. Nessa altura, não tínhamos a mínima suspeita do que estava para vir – uma senda de sangue e violência, de suspeita e medo.
Os gradeamentos das
janelas
negam a quem os
contempla da rua
qualquer sugestão
de vida
a ser vivida por
trás das grades.
Os caixilhos de
ferro forjado
sugerem locutórios
de um convento
da mais ascética
austeridade,
como se o espaço
(cujo acesso
as grades
peremptoriamente vedam)
fosse votado por
inteiro a extremos
exacerbados de
misticismo e de penitência.
Mas também se
pressentem salões escuros,
onde paira sempre o
cheiro fresco a encerado,
ou a perfume de
rosas e noz-moscada;
paredes revestidas
de damasco,
cobertas de grandes
telas,
paisagens
campestres e naturezas mortas.
Medalhões de talha
dourada, segurados
por fitas de seda
listrada a duas cores;
silhuetas de damas
coroadas de peruca,
fantasmas da corte
da Rainha Louca,
móveis nas suas molduras de tartaruga e charão.
Frederico Lourenço em Resumo:a poesia em 2010
Quando alguém conta
um dia ou uma vida está a calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem
contar só por palavras. Haveria que inventar artes de encher o silêncio e de
descobrir nele o peso certo do que somos. O que se é só se pode encontrar no
que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se vão escolhendo.
Nuno Camarneiro em Debaixo de Algum Céu
Legenda: imagem
Shorpy
Não fica longe, mas as pernas, destes tempos já não têm aquela
facilidade de caminhar de outrora.
Conheci-a no Bairro Alto e estava à mão de semear.
A livraria Ler
Devagar abriu portas mo ano de 1999. Depois a especulação imobiliária levou-os
para a Lx Factory em Alcantara.
Fui lá algumas vezes mas já há muito que não a visito.
A falta que mais faz
A raiz, o nome, dizem tudo: «Tudo o que é bom é feito devagar ou com vagar».
Uma deliciosa linha de pensamento.
«Espero que os compradores de livros se tenham apercebido de que é melhor comprar livros nas livrarias de bairro ou de rua do que nos centros comerciais», disse José Pinho um dos fundadores da Ler Devagar.
O Cônsul Honorário
Graham Greene
Tradução: Maria
Ondina Braga
Capa: José Cândido
Livraria Bertrand,
Lisboa, Outubro de 1973
O doutor Plarr, criado pelo pai com os livros de Dickens e de Conan
Doyle, achava os romances do doutor Jorge Julio Saavedra difíceis de ler, mas
considerava o esforço como parte das suas obrigações de médico. Dentro de
alguns dias teria um dos seus usuais jantares com o doutor Saavedra no Hotel
Nacional e devia aprontar-se para fazer qualquer comentário sobre o livro que
ele lhe tinha tão calorosamente dedicado: «Ao meu amigo e conselheiro doutor
Plarr, este meu primeiro livro para lhe mostrar que nem sempre fui um
romancista político, e para revelar, como só se pode fazer a um amigo íntimo, o
primeiro fruto da minha inspiração.» O doutor Saavedra, na realidade, não era
nada taciturno, mas o doutor Plarr suspeitava de que ele se considerava um
Moreno manqué Talvez fosse
significativo o facto de ter dado a Moreno um dos seus nomes de baptismo…
A capa do precioso livrinho já mereceu um Olhar.
Hoje, reproduzo as palavras que os editores, Emanuel Carneira e Paulo da Costa Domingues, colocam no prefácio. No meio de todo o lixo que por aí campeia, sabem bem estas palavras:
«Tem-se, por vezes, a sorte de ler aquilo
que poetas e editores entre si trocam de mensagens. Fala-se de livros, fala-se
do como dar a ler a oficina poética em páginas límpidas. Conspira-se sobre
esboços a legar ao Futuro. Tem-se, por vezes, sorte. A sorte de testemunhar da
fábrica, a sorte de sermos nós o autêntico destinatário, o alvo verdadeiramente
cultural de preocupações e minúcias editoriais. Cuja implícita pedagogia é de agradecermos.
Aqui, numa toada que nos faz lembrar o bailado felino de dois gigantes
criativos que se respeitam mutuamente e que, mutuamente, procuram eles (e
encontram) o melhor terreno para a travessia dalguma arte vinda do outro lado
do oceano. E se é um triângulo o que aqui temos, não é ele o buraco negro
sorvedouro de matéria, mas, isso sim, o triângulo “amoroso” revelador do
espírito de uma época culta irrepetível. Tirar o véu a cartas desta valia, que
circunstâncias várias acabam, tantas vezes, por votar a uma invisibilidade
perene – não fosse a acção dos que se dedicam, com obstinado entusiasmo, à
preservação de arquivos e da memória histórica – favorece, pois, a
possibilidade de enquadrar, de avivar protagonismos, de desenterrar detalhes
dessa extraordinária aventura humana, poética e/ou editorial.
Em cena: Mário Cesariny, poeta-ex-editor proponente de um original inédito do
poeta brasileiro Sérgio Lima, a Vitor Silva Tavares, editor-poeta e guardião do
Subterrâneo Três. O livro a que tudo se refere – Aluvião Rei – sairia chancelado & etc, no mês de
Setembro de 1992.
Da transcrição dos manuscritos, vai aproximativamente diplomática.»
Ao
fazer a mala reparou que pouco
levava daquela
lúgubre cidade.
Alguns vestidos, as
primeiras frésias
que tivera de
presente, agora murchas,
uma dezena de
exemplares de Moody
que lhe serviam
para amortalhar o resto.
Se é que alguma
coisa restava, pensou
junto ao aparador,
enquanto no espelho
se perdia o fogo
ruivo dos cabelos,
sublinhado pelo
negrume do olhar.
Ao ajoelhar-se
sobre a mala, escreveu,
em vez do seu nome,
«Goodbye to love».
Era também a sua
única morada,
até que a morte ou
a chuva a apagassem.
Manuel de Freitas em resumo:
a poesia em 2011
Legenda: fotografia
Shorpy
Quando foi trabalhar para a agência, ficávamos dispostos em pequenos gabinetes, só mais tarde foi criado um open space.
Mas no tempo dos
gabinetes, um chefe e quatro trabalhadores, até dava para ouvir a respiração de
cada um.
O Esteves, a cinco anos da reforma, passava noites e noites de insónias.
Volta e meia adormecia frente à máquina de escrever.
- Então, Esteves, que é isso?
- Desculpe Sr. Rolo, mas almocei favas!...
Os Dados Estão Lançados
Jean-Paul Sartre
Maria Luísa Vieira da Rosa
Capa: F.C.
Editorial Presença, Lisboa, Outubro de 1972
Pedro, que não teve
ainda possibilidade de dizer palavra, subitamente dá vazão à sua Cólera e olha
os mortos com um ar de desafio.
- E então? O que é
que isso prova? Que vocês falharam na vossa vida?
Os mortos respondem
todos em uníssono:
- Vocês também,
Falhámos, pois decerto. Todas as pessoas falham na vida.
O velho que esteve
silencioso desde que chegou ao quarto, toma a palavra e a sua voz domina a
confusão:
- Falha-se sempre a
vida, no momento em que se morre.
- Sim, quando se
morre cedo de mais – exclama Pedro.
- Morre-se sempre demasiado cedo…, ou demasiado tarde.
A flor que me não
deste
e, esquiva,
recusaste,
naquela tarde
triste,
- uma rosa amarela
debruçada na haste
–
foi afinal aquela
a flor que me
entregaste,
pra sempre me
entregaste,
naquela tarde
triste,
naquela tarde agreste!...
Saúl Dias