Quem partiu o espelho dos sorrisos de
Abril?
Diana Andringa
Legenda: óleo
de Nikias Skanipakis.
Histórias Clandestinas
Joaquim
Campino
Prefácio:
Dias Lourenço
Capa:
Catarina Campino
Colecção
Resistência
Edições
Avante, Lisboa, Março de 1990
Não é fácil esquecer o passado; nem os
momentos mais significativos da nossa vida. E muito menos quando esses momentos
estão ligados a um grande projecto colectivo em que acreditamos.
Da recordação de alguns desses momentos, em conversas de ocasião com gente nova, nasceu a proposta de passar ao papel alguns episódios da nossa clandestinidade – a mais rica e mais bela aventura que tivemos o privilégio de viver.
Com ironia,
Mário Viegas dirá que o 25
de Abril dele acabou no dia 2 de Maio.
Alguém, que
não recordo agora o nome, disse que do 25 de Abril até ao 1º de Maio
devo ter dormido, mas não me lembro. Na verdade, o dia mais longo da minha vida
não foi bem um dia: começou naquelas horas vertiginosas do dia 25, até ao 1º de
Maio, e que continuaram a sê-lo durante uns meses.
Por fim, uma
outra citação anónima:
Quem não viveu, esqueceu ou renunciou às delícias das ilusões desses grandes dias nunca vai conhecer o exacto perfume das flores.
Em todas os
jornais podem ler-se chamadas de atenção para que, nas manifestações do 1º de
Maio, o povo e os trabalhadores, tivessem cuidado com eventuais provocadores.
Esta veio
publicada no Diário Popular:
Na véspera,
na RTP, Sá Carneiro deu uma entrevista com um blá-blá-blá de que Mário Castrim
não gostou muito, e escreveu:
O Diário
de Lisboa lembrava que, no 1º de Maio, as padarias e os depósitos de
pão estavam encerrados: e colocava em título:
Constante das
notícias deste dia, o regresso a Lisboa, vindo do exílio, de Álvaro Cunhal.
Nas páginas
interiores do República podia ler-se que certa gente começava a deixar
as garras de fora.
A Junta de
Salvação Nacional veio publicamente salientar que os trabalhadores dos CTT eram
alheios a quaisquer diligências, actividades ou intervenção na violação da
correspondência. Essa violação era feita directamente pela PIDE-DGS, que
requisitava aos CTT, a correspondência de suspeitos de actividades contra a
ditadura.
Por decreto,
a Junta de Salvação Nacional, dissolvia a Acção Nacional Popular e destituía o
Chefe de Estado Américo Tomás e o Chefe do Governo Marcelo Caetano.
Na última página do Diário de Lisboa ficava a saber-se que o ex-pide
Sachetti foi preso quando tentava passar a fronteira em Valença.
No Porto, um ex-pide suicidava-se.
Adrian
Hastings
Tradução:
Graça Abranches e Isabel Mota
Capa: João
Botelho
Colecção:
Libertação dos Povos das Colónias nº 5
Edições
Afrontamento, Porto, Outubro de 1974
Recolhi toda a radiação cósmica
de fundo, mas depois fui repetindo
«o universo é um eco de vozes gastas»,
como alguém que envelhece
sem sabedoria.
A morte é estranha
e existe.
Paulo Tavares em Resumo: a poesia em 2010
A memória tem esses risos, essas
lágrimas dos tempos em que as lareiras faziam sentido e subiam pelas paredes à
sombra nocturna da janela.
Ana Salomé
29 de Abril
de 1974
O quinto dia
da nossa vida em liberdade.
A
importante, quase única, notícia que percorre todos os jornais:
É instituído como feriado nacional
obrigatório o dia um de Maio, considerado o «Dia do Trabalhador.»
Por outro
lado, continuam as manifestações, as reuniões políticas, a «caça ao pide.»
Outras
decisões:
Amnistia para
os Presos Políticos.
Abolida a
censura aos espectáculos.
Dissolução da
Acção Nacional Popular.
Destituído o
Chefe de Estado, bem como todo o Governo do regime deposto.
Serão
reintegrados os funcionários despedidos por motivos políticos
Continuava
o regresso dos exilados políticos.
Os
desertores e refractários do Exército Português, saúdam a Junta de Salvação
Nacional, querem voltar e pedem amnistia.
Tal
como o MPLA, a FRELIMO rejeita a solução federativa entre Portugal e os países
africanos.
1.
Na página
desportiva do Diário de Lisboa, uma interessantíssima
observação do jornalista Neves de Sousa e que constitui a abertura da sua
crónica sobre o jogo entre o Sporting e o Belenenses para a Taça de Portugal.
Com tanto
pide preso e barões e baronetes em fuga, gentes que tinham cartões de livre-
trânsito para todos os jogos de futebol, não ocuparam os seus lugares…
2.
O República chama para a 1ª página uma afirmação de Mário
Soares na sua chegada a Lisboa.
Nas páginas
interiores noticia que essa figura sinistra, que dá pelo nome de Capitão Maltês
e era o comandante da Polícia de Choque, ainda andava a monte.
Na última
página, ficava a saber-se que Henrique Tenreiro, ex-deputado e presidente da
Junta Central da Legião Portuguesa, para além de outros títulos, apresentou-se,
voluntariamente, à Junta de Salvação Nacional.
Também
no República, uma notícia insólita: a administração dos TLP tenciona
descontar aos trabalhadores o facto de não terem ido trabalhar no dia 25 de
Abril.
3.
Na primeira
página, A Capital dava conta da constituição do Movimento
Democrático Português.
Para a
Comissão Central Provisória, entre outros, foram votados Francisco Pereira de
Moura, José Tengarrinha, Victor Wengorovius, Luís Moita, Henrique Neto.
Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa
António Baião
Capa: Acácio
Santos
Colecção
Seara Nova nº 8
Seara Nova,
Lisboa, Dezembro de 1972
No 1º de Outubro de 1885, deu entrada nos cárceres de custodia da
inquisição de Coimbra o maior vulto do Portugal de então, o jesuíta António
Vieira-
Recluso durante 44 dias, tanto gemeu e pensou que não teve outro
remédio senão pedir que o transferissem para o seu colégio ou o internassem em
qualquer convento de religiosos. O cárcere do Santo Ofício de Coimbra era
húmido e frio, muito exposto ao vento norte, e para mais Vieira tinha sido
preso ainda convalescente, já lá dentro tivera três ameaças de recaída, com
febre e hemoptises e quando assim era no Outono, que faria em chegando os
rigores do Inverno?!
Além disso precisava de quem lhe escrevesse a alegação da sua
inocência, o que ele não podia fazer com a perspectiva constante duma ética,
como então se dizia, que o ia minando, e precisava duma copiosa livraria,
principalmente de teólogos e juristas, para o auxiliarem nessa elaboração.
Nada disso porém lhe foi concedido e o Padre António Vieira conhecido do leitor ilustrado pelos seus sermões tão ortodoxos e pelas sua carta tão morais, estava ali encerrado, como o último dos blasfemos que negasse a divindade de Jesus ou conspurcasse a hóstia consagrada!...
Um dos nossos mais antigos repórteres
fotográficos, o Leonardo Negrão, tem por hábito publicar, a preto e branco no
Facebook, imagens dos camaradas de redação, atuais e antigos, em momentos de
trabalho ou convívio, numa espécie de álbum digital a que chama “Para memória
futura”.
Sabemos que as memórias são diferentes
de pessoa para pessoa; o que uma acha relevante, outra pode nem ter notado.
Sabemos também que um país tem tantas memórias como cada um dos seus cidadãos,
e que há memórias coletivas de determinados grupos de pessoas que partilharam
experiências comuns. Todas estas, incluindo as das fotografias do Leonardo,
constituem a história e reforçam as raízes de uma nação.
Cada vez que há tentativas de
desvalorizar, contrariar ou mesmo apagar algumas dessas memórias, quem as
guarda reage, naturalmente, com alguma exaltação. Sejam as daqueles que, por
exemplo, viveram na ditadura sem sobressaltos, sejam as dos que nunca viveram
de outra forma nessa época senão em sobressalto. Ambas merecem respeito e
compreensão, mesmo sabendo que todos fizeram escolhas.
Por tudo isto, quando se olha para os
2626 nomes de ex-presos políticos talhados numa pedra à entrada do Forte de
Peniche, antiga cadeia do Estado Novo, transformado em Museu da Resistência e
Liberdade, inaugurado neste sábado, e se pensa no que sofreu cada um deles e
delas (há duas mulheres, cuja história é contada, nesta edição, pela nossa
jornalista Alexandra Tavares-Teles) qualquer silêncio que se pretenda impor sobre
as memórias destas pessoas, das suas famílias, é, tão-só, indigno.
Não digo isto porque entre esses 2626
nomes está o do meu pai, nem porque só quase adulta me descobri, em memórias
escritas num diário, como a menina de 3 anos que acordava todos à noite com os
seus gritos de pesadelos e obrigava todos os que com ela compartilhavam uma
casa para filhos de presos políticos a procurar, antes de adormecer, “animais
maus” debaixo da sua cama.
Nesse diário, escrito por uma mulher que
se tornou depois pedagoga e estudiosa destes traumas dos filhos da ditadura, a
interpretação é de que os tais bichos simbolizavam os PIDES que eu tinha visto
a irem buscar o meu pai a casa.
Não sei. Sei que os pesadelos não me
deixaram muitos anos, mas aprendi a enfrentá-los e a vencê-los. Acredito que
outros filhos e pais de presos políticos também o tenham conseguido. A maioria
dos nomes registados na tal pedra à
entrada da antiga cadeia - que alguém, que não respeita a memória, queria
transformar em hotel - são de portugueses comuns, mas também há cerca de uma
centena de estrangeiros, espanhóis principalmente, mas também angolanos,
moçambicanos, goeses e até alemães. Todos ali estiveram encarcerados pelo seu
pensamento, porque escolheram enfrentar os monstros.
É essa resistência que, individual ou
coletiva, jamais deverá ser esquecida - mesmo se há quem, como é caso dos
representantes da Iniciativa Liberal na manifestação do 25 de Abril na Avenida
da Liberdade, não tenha encontrado nada mais apropriado como palavra de ordem,
num dia em que se celebra o fim de um regime que perseguiu, torturou e matou
comunistas (ou os que eram tidos como tal), e num local onde muitos dos
sobreviventes dessa perseguição se reúnem a celebrar, que “comunismo nunca
mais”.
Num país no qual uma lei aprovada em
1997 para permitir aos presos políticos da ditadura, e aos que viveram na
clandestinidade, pudessem contabilizar esse tempo para efeitos de pensão nunca
foi regulamentada, o mínimo de reparação devida a quem gastou anos, por vezes
décadas da sua vida, nos calabouços do Estado Novo é respeito pela sua coragem
e sacrifício.
Além da sua disruptiva e oportuna
declaração sobre o dever de reparação histórica pelos desmandos do Império
português, Marcelo Rebelo de Sousa parece ter sentido a necessidade de
sublinhar que esse respeito é um fator essencial da preservação da memória
coletiva do país.
O Presidente da República podia só ter
estado na inauguração oficial do Museu da Resistência, proferido palavras de
circunstância. Mas escolheu esperar a inauguração protagonizada pelas centenas
de resistentes, ex-presos políticos e respetivas famílias, que decorreu mais
tarde.
Quem o viu, de cravo vermelho ao peito,
à porta do Forte de Peniche - a mesma porta por onde, 50 anos antes, saíram em
liberdade os últimos detidos -, seguindo depois, anónimo (não quis câmaras), na
massa anónima que entoava a Grândola Vila Morena, sentiu que também ele,
humildemente, queria render homenagem a quem ali tanto sofreu. E cantou com
eles a música histórica de Zeca Afonso. Para e pela a memória futura.
Valentina Marcelino,
hoje, no Diário de Notícias
Legenda:
fotografia da Ordem dos Arquitectos Secção Regional Sul.
O memorial,
com 21 metros de largura, 4 metros de altura e com cerca de 40 toneladas,
localiza-se na entrada interior da fortaleza e contém a inscrição de 66 mil
carateres que escrevem os nomes de 2510 presos políticos.
No topo
do memorial, está gravada uma frase do historiador e escritor António Borges
Coelho, também ele preso político em Peniche:
"Nomeai um a um todos os nomes
Lutaram e resistiram
A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta fortaleza"
O memorial com o nome de todos os que por ali passaram, foi um projeto desenvolvido pelo Atelier AR4 Arquitetura e executado pela Frademetalúrgica.
Tenho uma revolução,
francesa, perfumada,
que entre 68 e 75 me levou
pela mão, em festa,
a conhecer os mistérios
do mundo.
Anda, desde então,
encavalitada pelas estantes,
entre despojos da memória
e insones sonhos por cumprir,
poemas desesperados,
amores antigos e já esquecidos,
vagos distúrbios de consciência
e muitas outras coisas
espalhadas
que não vale a pena enumerar.
E guia-me
pelo labirinto do devir,
a livrar-me da ameaça do tédio
nosso de cada dia.
Adolfo Luxúria
Canibal
Nota do Editor: este poema de Adolfo Luxúria Canibal foi copiado do jornal Público de 1 de Abril de 2024.
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.28 de Abril de 1974
Os
portugueses viviam o seu primeiro domingo em Liberdade.
«Esta é a reprodução de um “poster” que apresentamos nas páginas centrais da nossa edição de hoje. O “poster” alusivo ao actual momento político português, é da autoria de João Abel Manta, artista que, por motivos demais conhecidos, há tempo não publicava qualquer trabalho no nosso jornal.»
Na redacção do Diário de
Notícias, as janelas ainda não tinham sido escancaradas. Na 1ª página
podia ler-se:
Na pág. 14 era publicada esta fotografia.
A legenda dizia que “um elemento anónimo do 1º Comité de Acção Popular, baptiza a ponte sobre o Tejo.”
O corpo da notícia esclarecia que o “Comité de Acção Popular” nascera espontaneamente, e propunha-se realizar uma série de acções com vista à eliminação de símbolos do regime derrubado a 25 de Abril.
A alteração do nome de Ponte
Salazar para Ponte 25 de Abril era o primeiro desses actos.
A propósito deste acontecimento,
um oficial, não identificado, da Junta de Salvação Nacional, declarou:
“estamos aqui, não para desrespeitar os mortos mas pare defender os vivos.”
Na Junta de Salvação Nacional, também as janelas estavam por escancarar!
Esta é a capa do nº1 do ano I de A Época.
Barradas de Oliveira é demitido
de director do jornal Época, que ontem não saiu para as bancas.
Depois de populares terem, anteontem, tentado destruir as instalações do jornal, que era um sustentáculo da ditadura, o Conselho de Redacção nomeou José Manuel Pintasilgo, chefe de redacção de ex-Época, como director do jornal, que passa, a partir de hoje, a publicar-se com o nome de A Época.
Começam a esboçar-se os primeiros sinais de camaleonismo.
Atente-se no final da sua
declaração de princípios:
Uma notícia quase perdida no
volume noticioso dos dias:
«Os desertores do Exército
apelam para uma amnistia que lhes permita regressar a Portugal.»
Há uma profunda
frase de Cesare Pavese:
«Não nos
lembramos de dias, recordamos momentos. A riqueza da vida está nas memórias que
esquecemos.»
Agora é o tempo
de, ainda, amiúde ouvir: «25 de Abril, sempre!»
A Biblioteca da
Casa está cheia de alguns livros que falam do antes e do depois de Abril.
O meu pai com
algum ritmo de tempo, lembrava em finais de conversa:
«Tens de ler
tudo, mas mesmo tudo. Até autores de que não gostas, que são contrários aos
gostos, às ideias que defendes. Não te podes convencer que, estando no meio,
consegues aperceber-te dos dois lados, não. E repetia: ficares no meio é como
dizer «fuzilem à vontade, senhores!»
Tudo isto para
dizer que sentir o 25 de Abril é ler a sua história, conhecer grande parte dos
quotidianos, dos dias do antes e do depois.
Nestes últimos
dias têm aparecido no Olhar as Capas, livros sobre o 25 de Abril, alguns
não tão favoráveis à data, mas fazem parte dos costumes que orientam as vidas.
Já os deveria
ter trazido aqui. Os que apareceram não completam, nem pouco mais ou menos, pelo
que o processo de ir publicando esses livros, irá prosseguir.
Para se poder
dizer «25 de Abril, sempre!» é preciso ler sobre a tal data que nos deu a possibilidade,
apesar de tudo, de sermos gente.
Legenda: Contra capa de 25 de Abril Imagens.
25 de Abril Imagens
Manuel S. Fonseca, Osório
Mateus, Jorge Molder
Rui Simões, José Manuel Costa,
João Lopes, Luís de Pina
José de Matos-Cruz
Capa: João Botelho
Edição da Cinemateca Portuguesa,
Lisboa, Abril de 1984
Teria sido preciso que um homem de génio tocasse as imagens da
Revolução de Abril para que, de mero documento de um processo político, se
transcendessem em saga, para que os factos se aproximassem da lenda. Mas,
pensando bem, para que há-de um homem de génio tocar um tempo e uma história
sem heróis?
A imprensa
diária continuava a publicar notícias, fotografias, reportagens sobre o
Movimento dos Capitães, a libertação dos presos políticos, o desmantelamento da
PIDE/DGS, bem como reacções internacionais aos acontecimentos verificados no
país.
“170 Pides nas celas de Caxias.”
Em baixo, à direita, uma
fotografia com a seguinte legenda:
“Máscaras de medo, de terror caracterizavam os Pides ao darem entrada nos camiões que os conduziram da Rua António Maria Cardoso para a prisão de Caxias – medo e terror que durante largos anos se comprazeram em espalhar no povo indefeso e nos estoicamente lutavam para restituir a Portugal a justa liberdade”.
Neste sábado, o “Expresso” fazia,
após os acontecimentos do dia 25, a sua primeira edição.
Em editorial declarava que “não precisamos fazer meia volta como tantos
outros (…) continuaremos, portanto, naturalmente, pelo mesmo caminho. Aceitando
sem reticências o desafio necessário que a nova situação política nos lança.
Participando na batalha contra os outros necessários desafios. Lutando por que
o país e cada um dos seus cidadãos saibam adaptar-se e beneficiem da mudança
que já estamos a viver.”
Também em editorial, o “Diário de Notícias” dedica-se, à moralidade, ao perfeito cinismo, ou o começar de pôr água na fervura do caldo, género portem-se bem meninos, que isto não é o da Joana:
“O que os Portugueses não devem entretanto perder de vista é que para se ter liberdade é preciso merecê-la. Cada um de nós tem de provar por si que é digno dela, adquirindo hábitos de tolerância e respeito pelo próximo que andam muito esquecidos. Só por esse modo poderemos triunfalmente refutar o argumento dos que negam ao povo português a maturidade necessária para ser livre”
Na sua página 5 dava conta
da romaria que ia acontecendo pela rua onde reside Spínola:
“Milhares de pessoas de todas as camadas sociais têm-se dirigido à residência do general Spínola, na Rua Rafael de Andrade, dando àquela artéria um movimento sem precedentes. A intenção é sempre, de saudar o presidente da Junta de Salvação Nacional e de lhe manifestar a sua adesão.”
Na sua 1ª página “O Século” noticiava que Mário de Soares partiria de Paris de comboio, estando prevista, para domingo a sua chegada a Santa Apolónia.
Após demoradas negociações, são libertados os presos políticos que se encontravam nas prisões da PIDE. Os presos tinham decidido que ou saiam todos ou não saia nenhum.
Palavras de Hermínio Palma Inácio, ao sair da prisão de Caxias, captadas para uma reportagem publicada na página 5:
“Isto é maravilhoso!.. Sabemos ainda pouco sobre os objectivos da Junta… Oxalá não seja só uma liberdade de doze meses.”
Noticiava, ainda “ O Século” que grupos de populares invadiram as instalações da Comissão de Exame Prévio, ex-Censura, destruindo mobiliário e vasta documentação e colocava um apelo do capitão Salgueiro Maia, pedindo aos populares que não destruíssem arquivos de valor histórico inestimável.
Pelas ruas da cidade os populares começavam a caça aos pides, publica-se uma fotografia que ficou para a História. Da notícia retiro este pormenor: “entretanto eram presos vários agentes da DGS entre os quais um morador no Bairro Espírito Santo em Odivelas, que foi denunciado por uma senhora. Trazia uma pistola de guerra nas “roupas íntimas inferiores.”
Em “Ultimas Notícias” referia-se
que o embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva” dirigiu-se pela
rádio e televisão à comunidade portuguesa:
“O processo que o país atravessa é pacífico, sem violências, e representa um caminho em busca da solução dos seus problemas, disse.
A página desportiva, falando do
regresso da equipa do Sporting, tinha este curioso título:
A eliminação da Taça das Taças esquecida na Cortina de Ferro por razões
óbvias.
O jogo realizara-se em Magdeburgo, na então chamada Alemanha Oriental.
Como os restantes jornais, O Século noticiava o assalto que populares fizeram ao edifício do jornal Época, que não se publicou neste dia, e que obrigou à intervenção de elementos das Forças Armadas.
Face a este incidente, e outros que iam acontecendo, a Junta de Salvação Nacional emitia um comunicado:
Noticia “A Capital” que foram demitidos os governadores de Angola, Moçambique e Guiné, nomeados novos comandos para as regiões militares, GNR e PSP, as tomadas de posição de diversos sindicatos, que no Técnico reabria a Associação de Estudantes bem como a reunião da Junta de Salvação Nacional com a CDE, a Sedes, a Convergência Monárquica e directores dos diversos órgãos de informação.
A CDE fazia-se representar por Francisco Pereira Moura, José Manuel Tengarrinha, Herberto Goulart, Pedro Coelho e Gilberto Ramos, a Sedes por Sá Borges, Magalhães Mota, Teodoro da Silva, A Convergência Monárquica por Rodrigo Montezuma, Pedro Paiva Pessoa e João Vaz Serra e Moura.
Exilado no Brasil o Prof. Rui Luís Gomes anunciou o imediato regresso a Portugal.
Na primeira página o “Diário Popular” informava que os bancos reabriam ao público na segunda-feira, enquanto na pág. 17 realçava um comunicado da assembleia da Conferência Episcopal da Metrópole. Os senhores bispos, tão silenciosos em tempo de ditadura, entenderam formular votos para o bem-estar da Sociedade portuguesa.
O Diário Popular dava conta que, em Beja, foi preso pela polícia um homem que ostentava um cartaz a pedir a extinção da PIDE.
Na sua agenda de espectáculos, podia ler-se a seguinte nota:
“Como os nossos leitores se têm apercebido, a programação da RTP foi profundamente alterada, não sendo ainda possível a organização de horários. Aconselhamos portanto a manterem os aparelhos ligados para a captação de qualquer informação importante ao País.”
No meio da alegria generalizada,
a notícia da morte do poeta Pedro Oom, fulminado por um ataque cardíaco. O
poeta que tinha 47 anos, um pouco menos que o regime deposto, e não resistiu à
emoção de ver cair a ditadura.
Não lembro como, quando e onde, terei
comprado este exemplar dos Cadernos de Circunstâcia. Com toda a certeza foi
antes de 25 de Abril e dentro daquele espírito de que tudo o que fosse contra a
ditadura comprava e porque o meu pai sempre foi da opinião que devíamos ler tudo.
É um caderno composto a stencil.
Nas suas 70 páginas pode ler-se
uma frase lapidar de KarlaMarx: «A emancipação dos trabalhadores será a
obra dos próprios trabalhadores» e a conclusão que «só nestes termos
será possível à classe operária e aos seus aliados apoderarem-se do aparelho de
estado instituindo a ditadura do proletariado.»
José Pacheco Pereira, no seu
livro «As Armas de Papel» diz que estes cadernos eram produzidos em
França, (1967 e 1970) da responsabilidade de Aquiles Oliveira, sediados em
Arcueil.
«Era distribuída [entre 1967 e 1970] em França e nos círculos de
emigração, e enviada para Portugal através de oficiais da Marinha portuguesa
que passavam nos portos franceses (dois dos seus membros, Jorge Valadas e João
Freire, tinham pertencido à Marinha) e dos contactos dos membros do grupo com o
interior do país. Entre esses contactos contava-se José Leal Loureiro que
levava a revista para o Porto, e um conjunto de ligações de José Maria Carvalho
Ferreira que transportava a revista para o interior do país no seu ano final. Em
Lisboa, distribuíam a revista António Viegas, Artur Pais, Mário Kruger, Carlos
Miranda, Ilídio Ribeiro e João Martins Pereira. A revista penetrava também no
interior através dos contactos dos estudantes e intelectuais radicais que se
deslocaram a Paris nos anos 1968-1970.
Os Cadernos de
Circunstância foram a revista mais influente no plano
político-intelectual publicada na emigração, introduzindo nos seus textos uma
atenção analítica que não era comum, assim como uma aproximação interdisciplinar
e uma fundamentação estatística que traduzia as preocupações intelectuais dos
seus autores.
A motivação inicial da revista em 1967 resultava da insatisfação com
os moldes da oposição ao regime salazarista, quer por parte do PCP quer dos
grupos maoistas que tinham sucedido à FAP. Manuel Villaverde Cabral tinha tido
a dupla experiência de ambos e entendia que era necessária muito mais
«informação objectiva e firmeza ideológica.»
Pacheco Pereira escreve ainda
que após a chegada ao poder de Marcelo Caetano, publicaram um panfleto sobra a
queda de Salazar da cadeira em Setembro de 1968, que Álvaro Cunhal atacou os
Cadernos no seu livro contra o esquerdismo, que a revista influenciou O
Tempo e o Modo e que o grupo autodissolveu-se, sem crise nem zanga, depois
da publicação do número 7, em 1970.
Na Biblioteca da Casa apenas
existe este exemplar do 1º número dos Cadernos de Circunstância.
Cadernos de Circunstância
Março de 1969, Nova Série, Nº 1.
Alfredo Margarido
Fernando Medeiros
Jorge Valadas
João Freire
Manuel Villaverde Cabral
Edição dos Autores
Paris, Março de 1969
A situação geral portuguesa desde a vinda para o poder de Marcelo
Caetano desenha-se agora diante de nós com complexidade crescente decerto, mas
também com uma maior clareza; as linhas de força tendenciais afirmam-se com
nitidez cada vez maior.
A fotografia mostra a decisão de Mário Viegas na sua Auto-PhotoBiografia (não autorizada), quando determina que o seu 25 de Abril foi de curta duração.
No dia 25 de Abril de 1974, quando o Movimento dos Capitães saiu para as rua, já os matutinos estavam em fecho de edição. Alguns ainda conseguiram colocar uma pequena notícia, a informação possível, na 1ª página, mais tarde fariam 2ª e 3ª edições. Os vespertinos tiveram mais desenvolvimento, mas só no dia seguinte, as notícias, as reportagens, os comentários conseguem um outro tipo de desenvolvimento.
Em alguns jornais poderia ler-se a frase histórica: «não terem sido visados por qualquer comissão de censura.Os acontecimentos ocorridos na
véspera são referidos: a rendição de Marcelo Caetano, a apresentação, madrugada
alta, através da RTP, da Junta Nacional de Salvação, a rendição da PIDE/DGS, a
libertação, em Caxias, dos presos políticos, a partida de Marcelo Caetano e
Américo Tomás para a Ilha da Madeira.
Aos poucos, a rotina do
quotidiano entra na normalidade.
Caminha-se para os empregos,
para as escolas, para as fábricas, os mesmos passos, os mesmos rostos, mas têm
uma outra vivacidade, um outro fulgor.
O Diário de Lisboa é o
único que puxa para a primeira página a grande notícia do dia: a libertação dos presos políticos.
No miolo da reportagem uma
pergunta óbvia, uma resposta com o seu quê daquilo que mais tarde irá
acontecer:
- O que vão fazer aos pides,
pergunta o repórter ao comandante dos páras.
- Temos que ter compaixão e humanidade para com eles, respondeu-nos o capitão.
Na página 15 do República
uma pequena, mas lamentável, notícia dá conta de que, apesar da intervenção dos
militares, não foi possível salvar muitos arquivos e documentos da Censura que
o povo lançou à rua e foram destruídos.
Aqueles documentos eram parte da
nossa história.
Estava lá nesse momento, assisti
ao crime, mas como se poderia tê-lo evitado?
Quarenta e oito anos de ódio e
repressão sobre um povo, cegam, pesam muito.
Na sua 3ª página “O
Século” noticiava que, presidida pelo engº Amaral Neto, e com a
presença de 38 deputados, reunira o plenário da Assembleia Nacional.
A sessão demorou quinze minutos
e, não mais, como Nacional, voltaria a reunir.
Também em O Século, a primeira fotografia publicada na imprensa da prisão de três pides, passos iniciais do que vai ficar a ser conhecido como a «caça ao pide.»
Num Diário de Noticias,
de que não possuímos a data, uma História de Joaquim Santos da Póvoa de Santo
Adrião:
«Exm.º Senhor Director-Geral,
Informo V. Exª que ontem, dia 25 de Abril de 1974, vários funcionários faltaram
ao serviço, invocando ter ocorrido uma revolução no País.
Esclareço que esta revolução não foi autorizada superiormente, não vendo
qualquer justificação para as faltas, tanto mais que o serviço se atrasou
consideravelmente.
Como na legislação vigente não estão previstas faltas pelo ocorrência de
revoluções, submeto o assunto ao alto critério de V. Exª, na certeza de que o
mesmo merecerá a atenção devida.
Lisboa, 26 de Abril de 1974
A Bem da Nação
O Chefe da 3ª Secção
Ambrósio Silva»
Diário de Uma Revolução
Orlando Neves
Mil Dias Editora, Lisboa,
Janeiro de 1978
- O New York Times e a
Pravda são os primeiros jornais do mundo a anunciar e a felicitar o povo
português pela sua libertação.
- Do Brasil, o então embaixador, Dr. José Hermano Saraiva diz que «em
Portugal se vivem momentos graves e para que todos os portugueses se mantenham
calmos.
- Não se realiza, em Lisboa, a procissão de Nossa Senhora da Saúde.
O 25 de Abril é um dia e são dias,
meses, anos. É daquelas datas
que se constelam, que estão
antes de hoje, que hoje ecoam ainda,
e que tremulizarão no depois de hoje
como a memória de uma outra
possibilidade no conflito dos reais.
Porque foi um processo de irrupção
de imensas vozes e corpos
no teatro da história
tal como a fazemos.
Porque foi um processo de
transformação do nosso espaço-tempo
e das nossas formas de habitar.
Porque foi a liberdade e a
democracia como emancipação
Porque foi a política como poiesis.
Manuel Gusmão, autor
do libreto para a ópera Os Dias Levantados de António Pinho Vargas sobre
o 25 de Abril, estreada no Teatro São Carlos em 25 de Abril de 1998.
As Viagens por
Abril não têm fim.
Como perguntaria o Baptista- Bastos:
«Onde estavas no 25 de Abril?»
É, andei por aí.
Com gente, procurando gente, pontes e
vales, tem sido assim esta vida.
E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.
Dizem que por um Abril houve uma
revolução, outros dizem que houve um golpe de estado, outros ainda que houve
uma abrilada, sucederam coisas gritadas nas ruas, outras soavam nas sombras
clandestinas.
Na escola disseram aos miúdos que tinham
que ir para casa, estava a acontecer qualquer coisa em Lisboa.
Que comemoramos hoje? Que resta daquele
dia?
O chefe de redacção telefonou ao repórter,
gritou-lhe: Salta da cama. A Revolução está na rua e é precisos
escrevê-la!
Isso é passado, é tão passado que eu já
não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer
coisa de que hoje não posso ver nenhum sinal, daquilo que o 25 de Abril trouxe.
Podemos saudar o desespero que nos invadiu
perante algo que falhou?
Estragaram a tua festa pá!, cantaram no
outro lado do Atlântico.
Houve quem dissesse que as revoluções são
sonhadas por idealistas e realizadas por fanáticos, e quem delas se aproveita
são os oportunistas de todas as espécies.
O 25 de Abril é um dia e são dias. É
daquelas datas que se constelam que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda,
e que tremeluzirão no depois de hoje.
Quase sem darmos por isso, milhares de
pessoas invadiram as ruas, ofereceram pão e cravos aos soldados, deram as mãos,
sorriram, dos olhos saltavam sonhos e esperanças.
Alguém perguntou como era possível tanta e
tanta gente quando meses antes, semanas antes, dias antes, eram tão poucos
aqueles que apareciam para escrever palavras de ordem nas paredes da cidade,
colar cartazes, distribuir uns panfletos impressos a stencil…
Será a memória curta? Apaga-se com
facilidade?
O apagamento de memória é chocante.
Deste dia até ao 1º de Maio, é
provável que muitos devem ter dormido, mas não se lembram bem. Uma semana de
loucura já ninguém me tira, posso não ser feliz mas poucos chegaram tão perto
disso a que chamam felicidade.
É preciso ter vivido os anos
terríveis, o tempo do desprezo, um tempo de ratazanas, para que aquele dia
tivesse sido o que foi, um navio de sonho, uma nave de loucos, protagonistas
duma enorme esperança, depois figurantes de um grande desencanto.
Terá sido assim há tanto tempo?
A ditadura acabou por ser derrubada por
militares que antes desprezávamos.
Dezassete horas e 45 minutos bastaram para
abater um regime que oprimiu um povo durante 47 anos, 10 meses, 34 dias e
algumas horas.
Teremos feito tudo para que as novas
gerações fossem mais felizes?
Vale a pena assinalar a data quando
nos esquecemos de ensinar a importância que aquele dia nos trouxe? Olham-se as
pessoas de hoje, os jovens de hoje, formam um grupo largo e variado mas,
olhando bem, estamos todos muito mal no retrato de conjunto…
Algures, numa dobra da história, alguma
coisa falhou. O cantor, de viola às costas, acabou por dizer que houve alguém
que se enganou.
A culpa é de todos, a culpa não é de
ninguém.
Naqueles dias, quase poderíamos dizer que
a paisagem mudara para sempre.
As paisagens até podem mudar, o resto… o
resto… o resto… é uma chatice… um busílis de questão…
O escritor perguntava e respondia: para
que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar.
Um dia voltaremos a encontrar-nos todos no
imponderável azul celeste.
E recomeçamos a busca dum país liberto,
duma vida limpa e dum tempo justo.
Mas será que ainda verei alguém desenhar
os nomes daqueles que, na sombra, nos lixaram a festa?
Montagem concebida com textos de:
Jorge Silva Melo, Virgílio Martinho,
Baptista-Bastos, José Saramago, Rui Cardoso Martins, Chico Buarque, Manuel
António Pina, Manuel Gusmão, Rodrigues da Silva, João Gobern, José Mário
Branco, Eduardo Galeano, Mário Dionísio, Cristina Carvalho, Sophia de Mello
Breyner Andresen.
Legenda: ilustração de António Pimentel para o livro As Portas Que Abril Abriu de José Carlos Ary dos Santos.