segunda-feira, 23 de maio de 2011

EVTUCHENKO EM LISBOA


Maio de 1967, tempos de ditadura.

Por aqueles tempos, o cinzentismo, a muralha de silêncio, por vezes, quebrava-se e saltavam pedras para o charco.

Acontecia  um grito, uma festa.

Como é que um escritor soviético desembarca no Portugal de Salazar?

Mercê das muitas influências, nacionais e no estrangeiro, que Snu Abecassis, fundadora e proprietária das “Publicações Dom Quixote”, mantinha
.
Possivelmente fez chegar a Salazar a mensagem que o homem, apesar de soviético, era inofensivo. Terá dado garantias.

O regime viu que talvez valesse a pena correr o risco. Para compor a cena, terá imposto, aconselhado que o escritor fosse a Fátima, ocorria o 50º aniversário do milagre da fé, com a presença do papa Paulo VI. Também calhava bem uma fotografia com um cartaz turístico, outras miudezas…

Penso que terá sido na “Seara Nova” que dei com uma referência, ao sucesso que a tradução do livro de um jovem escritor soviético estava a provocar no Brasil. O autor era Eugénio Evtuchenko o livro chamava-se “Autobiografia Precoce”.

Falei do entusiasmo ao meu pai, e se ele, pelos meios habituais e clandestinos, arranjava o livro.

A costela marxista-leninista do senhor meu pai, fez-lhe torcer o nariz, lembro-me de o ouvir dizer que autobiografia de alguém que tinha 30 anos, deveria ser apenas para gozar o pagode.

Passadas duas ou três semanas, chegou o livro. Começava assim:

“A autobiografia de um poeta são seus próprios poemas. O resto é suplementar.”

Sorrio ao lembrar a alegria com que li e reli o livro, como o fiz passar, de  mão em mão, pela malta.

Fácil ser-se ingénuo naquela idade, naquele tempo.

Peguei-lhe agora, está todo sublinhado.





Ao acaso:

“… para ser poeta, não é suficiente saber escrever poemas. É necessário, ter capacidade para defendê-los.”

“O pão não substitui o ideal. Mas, o ideal substitui o pão. Tal é, a meu ver, a natureza do homem. E estou convencido que só os grandes sofrimentos geram os grandes ideais.”

“A dura escola da vida me ensinou a ter confiança nos outros”.

Em Janeiro de 1967 aparecem na imprensa as primeiras notícias de que estava para breve a publicação, pelas “Publicações Dom Quixote”, da “Autobiografia Prematura” de Ievtuchenko – “um depoimento sobre a juventude, a poesia, o estalinismo e o socialismo,”

A 13 de Maio, surpresa das surpresas, Evtuchenko,, vindo de Espanha, passaporte devidamente visado pela Embaixada de Portugal, aterra na Portela.

Apenas no dia 16 os vespertinos darão a notícia da sua presença em Portugal e ficamos, então, a saber que, mal pusera pé em Lisboa, de imediato arrancoara para Fátima.

Do porquê de ir a Fátima dirá aos jornalistas:

“Porque eu sabia que uma experiência destas é uma coisa muito rara, muito importante.”

Pela ida de Evtuchenko a Fátima, ainda estou a ver o sorriso trocista do meu pai.

A leitura dos jornais da época, permite este desenhar dos passos do poeta:

Sábado à noite, regressa de Fátima.

Domingo de manhã dará um passeio por Lisboa, uma fotografia, publicada no “Diário Popular”, mostra-o junto à estátua de Camões.

“Camões é muito conhecido na União Soviética”, disse.

Manifesta o desejo de ver o Benfica e Eusébio mas estes jogavam em Aveiro e acabou por ir ao Restelo ver o Belenenses ganhar, por dois a zero, ao Vitória de Setúbal.

Encontro com jornalistas nas instalações das “Publicações Dom Quixote”. Uma frase que ficou:

“A poesia é como os pássaros e os pássaros não conhecem as fronteiras.”




Recepção com escritores portugueses, em casa de Snu Abecassis.

A 15 de Maio, na mouche, José Gomes Ferreira escreve nos seus “Dias Comuns”:

 “Telefonaram-me de “Publicações Dom Quixote a convidarem-me pata uma recepção em honra do poeta Ievtuchenko que se encontra, há dias, em Lisboa (facto que os jornais ainda não anunciaram). Agradeci, dei uma resposta vaga e não fui. Com toda a sinceridade, interessa-me pouco a carne-e-osso desse Poeta-Turista que anda a pavonear-se pelos países fascistas, por reclamo próprio.”

- Mal chegou e apareceram os fotógrafos – contou-me hoje o Baptista-Bastps – parecia histérico aos berros está aí algum fotógrafo americano? Algum fotógrafo americano?
- Que o pariu! – Disse eu comigo – Não o conheço. Ele, se quiser, que me procure!”

Na manhã seguinte vai até Sesimbra, na companhia de Fernando Namora.
Confraterniza, numa taberna, com pescadores, petisca queijos, bebe vinho da região.
O repórter do “Diário Popular” deixa cair um pormenor: ”comeu vorazmente salsa crua.”

À noite aparece, inesperadamente, na “Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense”, onde José Carlos de Vasconcelos dava um recital de poesia.

Não resistiu a recitar, em russo, o poema “Dorme Amor”

Dia 17, sessão de autógrafos na “Livraria Divulgação”, na Estefânia. Mais um pormenor da reportagem do “Diário Popular:Esgotados os exemplares da sua “Autobiografia Prematura”, (1000.000 exemplares) assinou sobre toda a espécie de papéis. Alguém lhe apresentou, subitamente, um Dicionário de Russo-Português.”
 
Nessa mesma tarde, no “Capitólio”, dará um recital de poesia, “lotação largamente excedida”, lê-se na reportagem do “Diário de Notícias”.
Teatralmente, Evtuchenko, recitou os poemas em russo. Antes, Fernando Assis Pacheco leu a tradução desses poemas, feita por J. Seabra-Dinis.

Em Junho, as “Publicações Dom Quixote”, hão-de lançar um livrinho “Ievtuchemko em Lisboa”, com a tradução do recital no “Capitólio”.

À noite, sessão de autógrafos na Feira do Livro. Os escassos livros reservados para a ocasião, desapareceram num abrir e fechar de olhos. 






Com uma máquina-quase-de-brincar, tirei algumas fotografias.
Gosto particularmente daquela em que Evtuchenko, oferece ao guarda da P.S.P. destacado para o pavilhão para manter a ordem olha o poeta, um exemplar da “Autobiofrafia Prematura autografado.

Aparece o José Carlos Vasconcelos e, no fresco da noite, ficamos à conversa. Fala-me, com emoção e entusiasmo, da impressão que, na véspera, quando apareceu no Recital de Poesia no Seixal, Evtuchenko lhe deixara.

A viva comunicabilidade de Evtuchenko não deixou apenas Carlos Vasconcelos impressionado, foram muitos mais.
   
Entusiasmo de ocasião que o tempo haveria de provar.

Na manhã do dia 18, Evtuchenko, toma o avião para Paris, onde apanhará um outro que o levará para Moscovo.
Disse aos jornalistas que “o público português é um dos melhores do Mundo”





No aeroporto da capital francesa, instado pelos jornalistas sobre a sua peregrinação a Fátima, Evtuchenko responde:

“A minha impressão foi extremamente forte e não pode ser resumida numas palavras. Nunca me poderei esquecer das expressões angustiadas dos circunstantes, procurando no céu uma esperança que, para eles, não existe na Terra.”

Lembrança para novo sorriso trocista do senhor meu pai.

Passados dois, três anos, começaram a ser conhecidas notícias que realçavam o seu oportunismo, o seu único interesse em conservar privilégios.

O entusiasmo pela leitura da “Autobiografia” foi morrendo aos poucos, para hoje ser apenas  uma remota lembrança no canto da memória.

A História diz que não se pode enganar as pessoas todo o tempo.

Em 5 Agosto de 1974, Alexandre O’ Neill, escrevia em “A Capital”:

“O Pássaro esteve há sete anos entre nós. Não chegou a ser o Maiakowski que provavelmente alguém esperava que ele afivelasse, mas alguns entusiastas tocaram-lhe como se o pássaro fosse uma peregrina relíquia do grande poeta soviético. Não era, não podia ser, como rapidamente se viu.”

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