Um desabafo:
A crise continua,
talvez pior. Desencanto, desânimo, velhice, contrariedades, e que sei eu.
Cheguei à beira de uma decisão – a de não continuar a escrever ou a publicar:
escrever para mim é relativamente fácil, mas pôr ordem nas ideias e frases é um
calvário. A impaciência dos velhos!...
José Saramago terá sondado Miguéis para que
colaborasse em A Capital, vespertino dirigido por Norberto Lopes e Mário
Neves depois de terem deixado o Diário de Lisboa.
Assim conta Miguéis:
Não lhe posso
dizer em pormenor porque recuso o seu convite a colaborara n’A Capital: é um problema entre mim – a minha
ética – e o Mário Neves. Este, logo que leu o meu artigo de Janeiro no Diário
de Lisboa, escreveu-me uma longa e lamentosa carta («este seu pobre amigo,»
etc.): que eu o tinha abandonado e estava servindo de bandeira aos seus
inimigos. Ora nem ele me procurou em Lisboa (eu telefonei-lhe em vão algumas
vezes) nem me convidou para o novo jornal. Levei dez dias e 20 folhas a
responder-lhe amigavelmente, e no fim mandei-lhe uma curta carta a prometer
explicar tudo em Lisboa, e sacrifiquei-lhe a minha colaboração no DL para não o
melindrar. A verdade é que o DL me ofereceu, e pagou, 20 dólares pelo
artigo, ou seja DOIS dias de vida em N. York, onde há quase 4 anos não ganho um
centavo. Se me calei (embora a decisão não seja definitiva) é porque não quero
agravar mais o boicote de que estou sendo vítima, o silêncio que as chamadas
«esquerdas» fazem à minha volta: despeito, inveja, necessidade de inventar
«inimigos», etc. É positivo (isso lhe disse) que, se não colaboro no DL,
também não o farei n’A Capital. Ele não respondeu, e não recebi o
jornal: só dois expls trazidos por alunos de português da Camila. Achei-os
pindéricos, lamentável. Da sua colab, diz-me Você: «Como sabe estou na…» Como
havia de saber!? V. só me tinha escrito as suas (más) impressões do jornal.
Depois disso Mário Sacramento instou-me (em nome do DL) a escrever para
este; pedem-me colaboração para o Comércio do P., e o poeta Eugénio de
Andrade, que estimo muito, quer um trecho sobre o Porto para um livro de… Saudades
do Porto (suponho). Recuso ou não respondo. Comemorações, Necrológios,
Homenagens… O que me apetece é escrever o tal panfleto contra Tudo-e-Todos, a
desmascarar as hipocrisias e conformismos dos nossos Inconformistas… E este
polemismo que me anda cá por dentro às cambalhotas, paralisa-me e esteriliza-me.
Chiça! Antigamente eu trabalhava duro pelo meu pão, pensando no Futuro, e
escrevia quando, como e o que me apetecia; agora tornei-me um escravo disso.
Quando saio, largando os papéis, sinto-me outro, respiro fundo. Chiça e
rechiça, três vezes chiça!
(…)
Das minhas razões
morais para não colaborara só lhe direi quando as tiver exposto ao Mário Neves.
Estes sujeitos que se dizem «liberais» (e fazem rios de dinheiro à sombra
disso) vêm coarctar a minha liberdade de escrever onde me apeteça, e impedir-me
de ganhar uns magros centavos indispensáveis, numa crise com a que atravesso…
Um dia rebento com eles… ou rebento comigo. Tudo isso lhe rogo fique entre nós. Não gosto de me explicar por
interposta pessoa. Vê agora o que me força ao silêncio? Não entro na Academia
dos Elogiosos…
Miguéis tinha uma velha amizade com Mário
Neves que sempre lhe foi publicando contos e outros textos enquanto dirigiu o Diário
de Lisboa.
No livro que escreveu sobre a Vida e Obra de José Rodrigues Miguéis, Mário Neves não refere este desentendimento que,
suponho, terá sido resolvido numa posterior conversa havida entre os dois.
Para isso aponta alguma correspondência,
publicada em Apêndice do livro, em que ressalta a cordialidade, respeito mútuo
e amizade que continuaram a nutrir um pelo outro.
Legenda: reprodução de um exemplar de A Capital tirada do blogue Ainda Sou do Tempo
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