O caso que agora
vos venho contar é muito digno de recordação de um tempo já tão distante. Estou
a pensar nos jornais. Não havia, na minha infância, lugares públicos onde se
vendessem jornais, posto de venda já montados para o efeito, como hoje há. É
possível, meus queridos tetranetos, que vocês não saibam o que é um jornal. É
um caderno de papel, com mais ou menos folhas, de formato 30 cm x 40 cm,
normalmente, que nos informa, dia-a-dia (e não só) do que vai pelo mundo, além
de incluir textos sobre os mais diversos temas.
No tal meu tempo
os vendedores de jornais (o homem dos jornais, o jornaleiro, ou o ardina)
andavam pela rua apregoando o nome do jornal que vendiam (o Diário de Notícias, por exemplo, que era
o que se lia em minha casa: “Tícias”, “Tícias”, e quem passava por eles, e
queria, comprava. Eles porém já tinham os seus fregueses certos nos prédios das
ruas por onde passavam, a quem faziam chegar os jornais por diversos processos.
Se os andares eram baixos podiam largar o seu pregão, com voz potente, junto da
porta da rua, e lá aparecia sempre quem viesse buscar o jornal. Mas para os
andares altos é que era pior e ninguém iria esperar que o pobre do ardina se
dispusesse a subir dezenas de degraus dos prédios onde moravam os seus
fregueses. Se o andar tinha varanda, óptimo. Assim sucedia na casa do senhor
Gama, vosso pentavô, que morava no 4º andar direito da Rua do Arco do Limoeiro.
Pois bem. O nosso ardina, diariamente, atirava, da rua, o Diário de Notícias
para a varanda do meu 4º andar. E nunca falhava. Com gestos rápidos e sábios, o
nosso ardina dobrava o jornal (que nesse tempo tinha o dobro das dimensões que
tem hoje), pela largura, tornava a dobrá-lo, comprimia-o bem com fortes
palmadas, tornava novamente e dobrá-lo, e repetia a operação até que o jornal
ficasse reduzido a uma tira. Então pegava nas pontas da tira, dobrava-as e
aconchegava-as, sempre rápido e com fortes pancadas, e, dali da rua, airava-o
violentamente às alturas, numa trajectória bem calculada e sempre bem conseguida,
fazendo-o cair na varanda do meu 4º andar! Espantoso, mas autêntico! Assim
sucedia todos os dias.
No fim da semana
vinha buscar o dinheiro.
Rómulo de Carvalho em Memórias
Legenda. Fotografia de João Martins.
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