sábado, 24 de junho de 2017

EU NÃO ERA UM PREGADOR QUE FAZIA MILAGRES


Tanto quanto sabia, eu não pertencia a ninguém na altura como ainda hoje não pertenço. Tinha uma mulher e filhos que amava mais do que tudo no mundo. Tentava sustentá-los e não me meter em sarilhos, mas na imprensa os grandes abutres continuavam a promover-me como o representante, o porta-voz, e até mesmo a consciência de uma geração. Aquilo tinha piada. Tudo o que eu fazia era cantar cantigas que iam direitas ao assunto e exprimiam poderosas e novas realidades. Tinha pouco em comum e muito menos conhecia a geração da qual se dizia que eu era a voz. Deixara a minha terra dez anos antes, não andava a vociferara as opiniões de ninguém. O meu destino fazia-se com que a vida oferecia, não tinha nada a ver com a representação de qualquer tipo de civilização. O que interessa é ser-se honesto consigo próprio. Eu era mais um vaqueiro do que um homem com uma flauta mágica.
As pessoas julgam que a fama e as riquezas se traduzem em poder, que trazem glória, honra e felicidade. Se calhar até trazem, mas nem sempre. Dei por mim enfiado em Woodstock, vulnerável, e com uma família para proteger. Mas ao ler as notícias, era descrito com tudo menos isso. Parece que o mundo sempre precisou de um bode expiatório – alguém que comande a carga contra o Império Romano. Mas a América não era o Império Romano e alguém que não eu teria de se oferecer para essa missão. Nunca fui mais do que realmente era – um músico de folk que contemplava a névoa cinzenta com olhos cegos de lágrimas e fazia canções que flutuavam numa neblina luminosa. Agora, tudo me tinha rebentado na cara e pairava sobre mim. Eu não era um pregador que fazia milagres. Tudo aquilo teria levado qualquer pessoa à loucura.

Bob Dylan em Crónicas

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