quarta-feira, 28 de junho de 2017

ESTAS CRÓNICAS SÃO DE UM POETA



Em carta, datada de 3 de Julho de 1968, José Saramago informa José Rodrigues Miguéis que lhe vai enviar as crónicas, publicadas em A Capital, posteriormente inseridas e Deste Mundo e do Outro, e diz:

Segundo o que entendo, estas crónicas são qualquer coisa de novo na nossa terra.
Aguardo com interesse o seu juízo.

Em carta, datada de 24 de Julho de 1968, Miguéis dá o seu instigante e esplendoroso «juízo» sobre as crónicas:

Devolvo-lhe hoje as crónicas (como suponho V. esperava) com muita pena de não me sentir mais eloquente e explícito – arrasado que estou de Verão e apoquentações. Verá em algumas delas as anotações a lápis, que fiz à margem ao lê-las e não apaguei. Desculpe. As suas Crónicas são excelentes, por vezes óptimas, e sempre de leitura absorvente; novas ou pelo menos raras no nosso ambiente de doutrinas e castanhas piladas; sem retórica de jornal nem prosa de encher. Justas. Embora seja difícil manter-se todas as semanas ao nível do ter-carradas-de-talento, então com a vida que Você leva, nunca (até aqui) cai no fácil, no corriqueiro, no sentimental de bairro: e isto em Lisboa-Portugal, onde o Assunto é, como diria a Dona Rosa, «aves-rara»! Você consegue sempre evitá-lo, mesmo nos quadros de rua (Amolador, Cego do harmónio, etc.). Por outro lado, as notas rústicas (Alice, Sapateiro, Cair no céu, etc.) são sempre duma justeza e flagrância (e fragância) de evocação: e sem Rusticidade. (Fala do campo, das águas e das flores como quem os conhece de dentro.) Consegue sempre ser simples (que é o mais difícil) dentro da complexidade do seu estilo de poeta, pela visão e pela linguagem: algo críptica (como é devido!) mas sempre sugestiva e tão visual, e em geral risonha. Estamos desabituados desta feição especulativa e acentuadamente literária… sem «literatura». O curioso é que o seus factos, pessoas e ambiente resultam sempre mais reais (ou realísticos) através da névoa Chagalliana de cores, formas e movimento, e integrados. Porque Você desenha e colora a escrever! (Cito: «… volatilizado no interior do sol atómico». Incisivo, justo e pictural!) Ao invés dos nossos cronistas e comentadores sentenciosos, que tudo vêem (?) através dos vidros defumados de doutrinas mal digeridas, V. tem uma «filosofia» que, sem ser optimista, antes levemente céptica, amarga e protestante, nos leva a crer e a agir: «desanimar e recomeçar até chegar ao ponto onde o arco-íris tem a primeira raiz.» Isto, além de afirmativo, é belo (Desculpe). É claro, há sempre o perigo de nos deixarmos arrastar pela Prosa – mas, como eu disse do Herberto Helder, «os autênticos Poetas são de uma disciplina severa!»

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