Em carta, datada de 3 de Julho de 1968, José
Saramago informa José Rodrigues Miguéis que lhe vai enviar as crónicas,
publicadas em A Capital, posteriormente inseridas e Deste Mundo e do
Outro, e diz:
Segundo o que
entendo, estas crónicas são qualquer coisa de novo na nossa terra.
Aguardo com
interesse o seu juízo.
Em carta, datada de 24 de Julho de 1968,
Miguéis dá o seu instigante e esplendoroso «juízo» sobre as crónicas:
Devolvo-lhe hoje
as crónicas (como suponho V. esperava) com muita pena de não me sentir mais
eloquente e explícito – arrasado que estou de Verão e apoquentações. Verá em
algumas delas as anotações a lápis, que fiz à margem ao lê-las e não apaguei.
Desculpe. As suas Crónicas são excelentes, por vezes óptimas, e sempre de
leitura absorvente; novas ou pelo menos raras no nosso ambiente de doutrinas e
castanhas piladas; sem retórica de jornal nem prosa de encher. Justas. Embora seja difícil manter-se
todas as semanas ao nível do ter-carradas-de-talento, então com a vida que Você
leva, nunca (até aqui) cai no fácil, no corriqueiro, no sentimental de bairro:
e isto em Lisboa-Portugal, onde o Assunto é, como diria a Dona Rosa,
«aves-rara»! Você consegue sempre evitá-lo, mesmo nos quadros de rua (Amolador,
Cego do harmónio, etc.). Por outro lado, as notas rústicas (Alice, Sapateiro,
Cair no céu, etc.) são sempre duma justeza e flagrância (e fragância) de
evocação: e sem Rusticidade. (Fala do campo, das águas e das flores como quem
os conhece de dentro.) Consegue sempre ser simples (que é o mais
difícil) dentro da complexidade do seu estilo de poeta, pela visão e pela linguagem:
algo críptica (como é devido!) mas sempre sugestiva e tão visual, e em geral
risonha. Estamos desabituados desta feição especulativa e acentuadamente
literária… sem «literatura». O curioso é que o seus factos, pessoas e ambiente
resultam sempre mais reais (ou realísticos) através da névoa Chagalliana
de cores, formas e movimento, e integrados. Porque Você desenha e colora a
escrever! (Cito: «… volatilizado no interior do sol atómico». Incisivo, justo
e pictural!) Ao invés dos nossos cronistas e comentadores sentenciosos, que
tudo vêem (?) através dos vidros defumados de doutrinas mal digeridas, V. tem
uma «filosofia» que, sem ser optimista, antes levemente céptica, amarga e
protestante, nos leva a crer e a agir: «desanimar e recomeçar até chegar ao
ponto onde o arco-íris tem a primeira raiz.» Isto, além de afirmativo, é belo
(Desculpe). É claro, há sempre o perigo de nos deixarmos arrastar pela Prosa –
mas, como eu disse do Herberto Helder, «os autênticos Poetas são de uma
disciplina severa!»
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