segunda-feira, 5 de junho de 2017

MAS NÃO FORA A MÚSICA...


Ainda a carta, datada de 4 de Maio de 1969 de Jorge de Sena para Eugénio de Andrade:

Nada há mais hipócrita que a hipocrisia das «democracias» - a menos que a gente viva na Dinamarca ou na Holanda. E realmente as Américas fizeram-se para chegar a elas analfabeto e descalço, da Polónia ou do Minho, da Irlanda ou de qualquer aldeia da inconsciência humana.
Também eu me vou arruinando em discos que, como os livros que sempre vou comprando, até já excedem a minha capacidade temporal de ouvi-los. Mas não fora a música, e às vezes um filme ou uma peça de teatro, e seria difícil respirar. Ainda ontem me deliciei a ver, pela companhia da universidade, uma altamente subversiva apresentação de poemas(muitos dos quais tenho traduzidos para o português) e de cenas de Brecht – que ao mesmo tempo me irritou pela gratuita provocação comunistóide que só pode tornar mais dura a posição das esquerdas. Não vêem estes asnos a que ponto servem o Establishement, fornecendo armas para o pânico da gente pacata e timorata. Como vês, meu caro, estou como tu, que se há-de fazer neste país senão ouvir Mozart ou outro qualquer?

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